Samba do telespectador doido

              A televisão se superou na cobertura de grandes eventos. Transmitiu os desfiles das escolas de samba quase tão mal quanto a última guerra. As grandes atrações do Carnaval carioca cruzaram o vídeo como rajadas de luzes em noite de tensão no golfo. Quem piscou não viu Luma de Oliveira passar.
            Problemas técnicos à parte, não dá para entender porque quem está em casa não pode assistir aos desfiles parado em um determinado ponto do Sambódromo. O olhar do telespectador corre nervoso da comissão de frente para a bateria, da dupla de mestre-sala e porta-bandeira para a ala da velha guarda, do último carro para o abre-alas, da bunda de uma para os peitos de outra. Parece que as imagens caíram no chão e alguém as embaralhou de qualquer jeito na pressa de levá-las ao ar.
            Não há enredo que faça sentido, ainda mais com narração de Kleber Machado, que já não é grandes coisas na sua especialidade, a locução de futebol. “O Salgueiro está com cara de Salgueiro”, dizia ele em clima de Show do Intervalo, entre uma e outra intervenção didática sobre as histórias malucas que os carnavalescos inventam para justificar a criação. Mendigos, hebreus, zumbis, piratas, fenícios, macacas pelancudas, para tudo Kleber Machado tinha uma explicação na ponta da língua, nada que fizesse muito sentido com as imagens apresentadas.
            “Agora vamos ouvir o samba”, dizia o narrador quando, imagino, sentia vontade de fazer xixi ou de beber um copo d’água. Três minutos depois, lá estava de volta, falando pelos cotovelos, levando a sério a História da Arte que se escreve em barracões. Sobrepondo-se ao tom professoral em que a festa se narrava, o pessoal de casa perguntava-se uns aos outros “a Luma já passou?”, “quem é essa?”, “a bateria deu paradinha?”, “quantos minutos essa escola ainda tem para desfilar?”... De vez em quando alguém gritava “calem a boca!”, tamanha algazarra que tomava conta do ambiente.
            Como nos campeonatos de futebol em que esconde arquibancadas vazias para assegurar o sucesso da transmissão exclusiva, a TV Globo vende no Sambódromo a idéia de que tudo o que passa na avenida é divino, maravilhoso. Se o cachê de Haroldo Costa e Maria Augusta – que ao contrário de Kleber Machado são do ramo – for proporcional à quantidade de elogios que rasgaram em seus comentários, os dois vão poder passar o ano inteiro sem fazer nada.
            Completando o trio de comentaristas, Ivo Meireles foi pelo menos original ao reparar a quantidade e a qualidade dos seios de umas e outras. Foi mais divertido que ver Dudu Nobre enrolado com suas correntes de ouro e as perguntas que fazia ao Capitão Guimarães e ao rapaz que saiu do Big Brother Brasil para desfilar. Se Dudu Nobre for tão bom sambista quanto revelou-se jornalista, vai acabar tendo que vender as jóias.
            Em alguns momentos, o clima era de revolta em torno da televisão no sítio em Teresópolis onde passei o Carnaval. “Mostra a Luma, seu idiota!”, gritou um. “Me deixa ouvir a bateria, caramba!”, implorava alguém revoltado com os cinco segundos de som direto que a TV Globo reservava aos ritmistas de cada escola. Era teco-teleco-teleco-teco, e tchau.
            E lá vamos nós correndo numa câmera em sentido contrário ao caminhar dos sambistas, corta para a Apoteose, olha lá em cima o Kleber Machado em sua torre de transmissão, sempre de costas para os desfiles. De repente – poinhoinhoin – o bonequinho das Casas Bahia saltava sobre o público nas arquibancadas. O delírio virtual confirmava: aquilo que a gente vê na TV não tem nada a ver com o que se vê no Sambódromo – e vice versa. Quem foi à avenida não viu, por exemplo, a quantidade de fogos que a Globo soltou na telinha, só para seus telespectadores.
            Sinceramente, deu saudades do Fernando Vanucci.
 

Tutty Vasques
Publicado no site nomínimo em 06 de março de 2003
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