Reedição em 2004

 

          Eu acho muito importante que o samba procure resgatar sua memória. Acho a idéia de trazer sambas antigos para a avenida é excelente, ainda mais ao completar vinte anos de Sapucaí e vinte anos de LIESA, entidade que, mesmo cometendo alguns erros, trouxe inúmeros benefícios para o desfile.
          Mas acho que fazer as escolas desfilarem oficialmente com sambas antigos é um sério golpe nas próprias escolas e no futuro do carnaval. Existem vários fatores a serem questionados, mas o principal deles é a continuidade artística dos desfiles. O processo evolutivo de criação do carnaval sofrerá uma grave interrupção que abrirá um questionamento sobre o que pode acontecer a partir do próximo ano.
          Se a experiência for aprovada e os dirigentes resolverem repeti-la, qual será o futuro das escolas ? Até quando teremos sambas "antológicos" para repetir ? E porque duvidar dessa repetição ? Com o atual rumo das coisas, nada mais é surpresa.
          É uma questão histórica. Nunca houve um ano sem músicas novas no carnaval. A atualidade da trilha sonora é essencial para refletir o momento artístico e as novas tendências culturais. Resgatar sambas antigos é trazer de volta uma estética ultrapassada que não serve mais aos atuais desfiles. Não foi à toa que os sambas mudaram seu andamento, seu estilo de letra e melodia. Eles mudaram para se adaptar a todo um modelo artístico que também mudou.
          É a constante renovação que mantêm vivas as escolas de samba. Onde foram para as marchinhas de tanto sucesso no passado ? Elas não se renovaram e acabaram esquecidas. Hoje, fora da Sapucaí, o que se escuta no carnaval, infelizmente, é o funk.
          Não adianta reclamar dos sambas de hoje em dia e imaginar que esta é uma discussão que se desprende do resto da festa. Para que as músicas atuais façam sucesso é preciso repensar o modelo de escola de samba que se tem. É preciso primeiro resgatar as camadas populares - o que, felizmente, algumas escolas estão tentando fazer. É preciso criar enredos que permitam aos compositores a criação de letras que tenham o que dizer e não viagens "maionésicas". É preciso deixar de escolher sambas por amizade ou dinheiro. É preciso fazer um CD mais bem produzido em todos os sentidos e divulgar este CD com maior profissionalismo.
          Resgatar sambas antigos é uma solução para encobrir a realidade, não para resolver o problema. Estão querendo tapar o sol com a peneira ao invés de resolver a questão de verdade, o que parece ser muito mais complicado. Todos querem ver o povo cantando, com os sambas na ponta da língua. Todos querem ver enredos bem pensados e criativos. Mas será que eles só podem existir no passado? Será que a inventividade e o talento se esgotaram ? Ou será que eles estão sendo cada vez mais "podados" por dirigentes que não querem ou não conseguem enxergar a realidade?
          As disputas de samba-enredo são de fundamental importância para a existência das escolas. É neste momento que elas se afirmam como agremiações. No burburinho das quadras a vida social e política ganha corpo quando se formam grupos para defender uma ou outra composição. Ali existe uma integração entre os diferentes setores, interligados pela vontade de cada um de desfilar com o samba que julga melhor para a sua escola. É um exercício de democracia, mesmo que ela não defina o vencedor, porque há debate, há comunhão entre compositores, baianas, bateria, harmonia, velha-guarda,...
          Acabar com essas disputas é acabar com a alma das escolas. É deixar os ensaios sem motivação por quase todo o ano. Só em janeiro chegam os "estrangeiros" que simplesmente se interessam pelo "show". O que fazer até lá? Nenhum tipo de festival de samba de quadra vai substituir a adrenalina da escolha de um samba enredo.
          Outras questões importantes devem ser levadas em consideração. Muitas escolas que hoje fazem parte do Grupo Especial não têm sambas antológicos para reeditar. Será uma afronta fazê-las cantar sambas de escolas que hoje estão no Grupo de Acesso. Uma afronta a elas mesmas e às escolas que não poderão reeditar suas próprias obras. É quase um crime fazer isso, é praticamente acabar com a identidade de uma escola. É transferir uma obra artística de um autor para outro.
          Carnaval é uma grande brincadeira, mas Martinho da Vila foi muito feliz no samba que compôs para o desfile da Unidos do Mundo, onde dizia : "sei que os sambistas desfilam não é só para se divertir". As escolas de samba são representantes de uma cultura muito importante para a identidade carioca e brasileira. Não se pode jogar valores que nortearam a história dessas agremiações no lixo por conta de vaidades pessoais ou tentativas equivocadas de trazer de volta emoção e alegria aos desfiles. Vamos repensar o que há de errado no carnaval para atingir este objetivo.
          Voltando ao que disse no início, acho saudável que se tente resgatar sambas antológicos. Deixo aqui uma sugestão. Poderíamos criar uma escola que congregasse componentes de todas as agremiações para encerrar o desfile das campeãs numa grande apoteose do carnaval carioca. A Liga destinaria uma verba para a confecção das alegorias e as fantasias seriam vendidas como as de qualquer escola. Pode se fazer uma grande eleição popular através de jornais ou da Internet para definir qual será o samba a ser cantado.
          A bateria seria formada pelos diretores e melhores ritimistas de cada uma das agremiações e a cada ano um carnavalesco consagrado seria responsável por projetar alegorias e fantasias. Os melhores intérpretes regravariam o samba escolhido que entraria como faixa bônus no CD. Seria uma grande festa de congraçamento do samba carioca que não mancharia os desfiles oficiais e poderia se repetir a cada ano para encerrar a maior festa do mundo.
          Ficam registrados o protesto e a sugestão.

 

Eugênio Leal
(Jornalista, compositor de samba enredo e diretor de bateria)

 

Artigos