Maravilha de cenário

 
            No remoto carnaval de 1982, ainda na era pré-Sambódromo, o Império Serrano brindou o público com um samba de antologia (o do refrão "Bumbum paticumbum prugurundum"), que terminava numa profecia: "Superescolas de samba S.A./Superalegorias, escondendo gente bamba/Que covardia." Quis o destino que a previsão desabasse sobre o próprio Império. A escola de Madureira atravessa a era da festa milionária condenada a papel plebeu. Sem as montanhas de dinheiro das concorrentes, enfileira desfiles opacos, que por vezes a levaram até à humilhação do Grupo de Acesso.
            Em 2004, a verde-e-branco que por décadas foi um emblema de excelência carnavalesca exumou memorável pedaço de sua história. A 20 minutos, Zona Norte adentro, de Mangueira e Salgueiro - blockbusters do samba, que transbordam de gente sábado sim, sábado também -, o Império oferece um estágio de bamba em sua quadra. O tempo volta 40 anos, e quem quiser se acaba até de manhã ao som de "Aquarela brasileira". Magia pura.
            De volta graças à decisão da Liga de Escolas de repetir carnavais passados - ótima idéia que só tem o pecado de ser facultativa -, a magistral composição de Silas de Oliveira, de 1964, ensina uma lição aos xiitas do estilo contemporâneo. Os equivocados estetas da lógica marcial que domina a festa têm a suprema oportunidade de aprender: o que é bom vence o tempo. Sempre.
            Uma visita à quadra do Império realiza o melhor sonho de carnaval. Semanalmente, a escola apresenta a maravilha de um samba perfeito, nascido de um enredo descomplicado, sem a pretensão que envenena o espetáculo. A música de Silas de Oliveira passeia pelo Brasil a bordo de um vocabulário rico e simples, de ritmo irresistível. Celebra belezas, riquezas e outros predicados, numa alegria de almanaque.
            O povo de Madureira canta seu hino feliz da vida, prometendo um baile de emoção no início da madrugada de terça-feira de carnaval, quando apontará na Sapucaí. Enquanto não chega o dia, "Aquarela brasileira" incendeia a quadra, enlouquece as passistas, faz as senhoras da velha guarda cantarem com entusiasmo que parecia perdido. Como não fica lotado - as superescolas são outras -, todo mundo pode se divertir confortavelmente em paz.
            A festa é regida pela bateria dos inconfundíveis agogôs, que conduz o samba em versão mais acelerada - concessão sensata diante da atual dimensão do carnaval. Ninguém reclama. A nota triste do presente está na moldura luminosa - o palco dos ritmistas leva o nome de Antonio Carlos Araújo, mestre Macarrão, assassinado em julho de 2002 por traficantes do Morro da Serrinha, famoso em outros tempos apenas por ser o berço do Império.
            O maestro avalizaria a ressurreição de um dos melhores sambas de todos os tempos. E conduziria os comandados no empolgante ensaio, que começa com outras jóias, como "Heróis da liberdade" (de Silas, Mano Décio da Viola e Manuel Ferreira), de 1969; e "Bumbum paticumbum" (de Aluízio Machado e Beto Sem Braço), o da profecia. A cidade que lota quadras mais badaladas não sabe o que está perdendo.
            Na verdade, vai além do samba a contribuição imperiana ao carnaval de 2004. Ao lado de Portela, Tradição e Viradouro, a verde-e-branco transformou-se em alternativa à ditadura do ufanismo patrocinado que domina os temas. O próprio Império caiu na armadilha em 97, na equivocada homenagem a Beto Carrero que a levou à segunda divisão do samba. Salvo exceções consagradas, a insistência em não profissionalizar de vez um espetáculo que se tornou planetário - permitindo, entre outras evoluções, o merchandising, como em filmes, peças, etc. - aprisiona as escolas a desfiles aborrecidos sobre estados, setores da economia, empresas e famosos endinheirados. De tão anacrônico, o formato ganha uma lição de modernidade - direto do passado.
            Na vida real da Sapucaí, o Império tem microscópicas chances de ser campeão. (Não foi em 1964, terminou em quarto.) Vai à avenida ferido por endêmica briga política, que no penúltimo capítulo depôs a presidente. Tampouco ostenta saldo bancário para efeitos especiais mirabolantes, luzes, cores e adereços do nível das super-rivais.
Às favas com a técnica, se for para materializar, com leve adaptação, um dos versos de Silas. Não se pode deixar de ver - e, sobretudo, ouvir - "esta maravilha de cenário", que o Império Serrano oferece ao Rio.

Aydano André Motta
(Publicado no Jornal O Globo - Opinião em 12 de janeiro de 2004)

 

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