O carnaval é uma festa feminina

 
          Hoje é carnaval. E, como ando numa onda nostálgica, sou arremessado para 1950, ao colo de meu pai, na Avenida Rio Branco, vendo passar as “sociedades” carnavalescas.
          Elas desfilavam justamente hoje, na terça-feira gorda. Eram carros alegóricos cheios de rodas moventes, de estátuas de papel e massa, grandes e toscas carrancas, estrelas, sóis, luas cobertos de mulheres provocantes. As “sociedades” competiam com nomes góticos como Pierrôs da Caverna ou Tenentes do Diabo. Todo mundo cantava: “Chiquita Bacana lá da Martinica, se veste com uma casca de banana nanica!” De repente, eu vi um carro imenso que era um despotismo de cachos de banana, com uma mulher lindíssima, morena, completamente nua na proa. Os pais de família, as mães de família (todo mundo era de família) sussurravam: “Olha a Elvira Pagã! Olha a Elvira Pagã!”.
          Já contei essa história aqui, mas repito essa visão do carnaval.
          Elvira Pagã era apenas uma vedete mas, naquele ano remoto, ela queria “provar” alguma coisa. Algumas atrizes como ela (Luz del Fuego e outras) transcendiam o palco e viravam o símbolo vivo de desejos reprimidos no coração das famílias. Eu olhava em volta e via nas senhoras distintas a inveja infinita e escandalizada e no olhar de meu pai um brilho faminto que eu não conhecia, voltado para a Pagã (que nome anticristão e nu!). Elvira foi a precursora corajosa de todas as mulheres nuas, como Luz e Eros Volúsia.
          Hoje, as mulheres do carnaval travam uma competição frenética de bundas e seios e eu me pergunto: O que querem elas provar? Querem nos levar para o fundo do mar como sereias, querem destruir os lares, querem mostrar que o sexo sem limite resolverá os problemas do Brasil?
          Talvez. No carnaval vemos que nosso inconsciente cultural está à flor da carne. Quanto mais civilizado o país, mais fundo é o recalque. Já imaginaram a cascata de bundas na Suíça? Mas é melhor entendermos o Brasil através do carnaval do que ver a folia louca como um desvio da razão. Temos uma outra forma de seriedade, mais alta que a gravidade do mundo anglo-saxão. Em nenhum lugar do mundo vemos isso. Onde existem essas pirâmides de corpos se atirando uns contra os outros com sexo e música? No entanto, olhando bem, vemos que o nosso carnaval não aspira a nenhuma desordem, ao caos, como pode parecer a um turista ou um moralista. Talvez seja uma doença “salvadora” de que o mundo precisa. Trata-se de uma utopia sexual brasileira, como se o país aspirasse a uma trepada pós-histórica definitiva, uma revelação, um messianismo sexy. Nossa sacanagem é do fundo das matas, sem culpa, indígena e africana, diferente das surubas calvinistas de Nova York, onde inventaram o sexo torturado nas boates doentias e acabaram no cultivo da aids. Comparando com a alegria do mundo rico, o nosso carnaval é feminino, enquanto o rock é de homem. O rock é guerra; o carnaval é luxo e volúpia. No carnaval os homens querem virar mulheres. Todos querem ser tudo: os homens querem ter seios de fecundidade e as mulheres querem ser sedutoras máquinas de excitar pênis dançantes. O carnaval é um travestimento, daí o sucesso dos gays e drag queens, carnavalescos o ano todo. O mundo macho tem muito a aprender com as mulheres no carnaval, as filhas das mucamas mulatas, das escravas lindas, misturadas com o glamour das estrelas do cinema e TV. O nosso carnaval quer transformar a cultura em natureza. O carnaval é anti-Bush, anti-Iraque, antibode republicano. Pode ser o antídoto devasso contra o pragmatismo fundamentalista. África e índios nos salvaram, como deram vida aos USA. Que seria da América sem o jazz? Um país branco-azedo, cheio de Wasps tristes.
          No carnaval existe uma coisa mais além da “imoralidade”; há uma santidade nesta explosão de carne que não se explica. Mas, mesmo assim, dói-me ver a virtualização do carnaval de hoje, no Rio. O “estar” deu lugar ao “ver”. O carnaval oficial virou uma festa para voyeurs, turistas inclusive brasileiros na TV e arquibancadas, turistas de si mesmos. Hoje o carnaval chega pronto. Antes, era uma revelação; hoje ele esconde qualquer coisa. Falta um minimalismo poético nos desfiles de luxo, perdeu-se a delicadeza dos detalhes. Falta o mal jeito, faltam a ingenuidade, o romantismo, faltam Braguinha, Lamartine. Por isso, acho que a grande tradição do carnaval está mais presente nos blocos dos foliões anônimos. Nas ruas, estão os blocos dos anjos de cara suja, os blocos das escrotas, dos vagabundos, dos bêbados ornamentais, da crioulada pobre. Podemos ver nas ruas a preciosa origem do carnaval profundo. Lá estão os famintos de amor, os malucos, os excluídos da festa oficial. Só os sujos são santos. Ali vemos as fantasias de surda revolta contra o trabalho desumano, o exorcismo da miséria, o prazer de escrachar a beleza óbvia dos ricos. Pela crítica a essa beleza limpa, vemos uma poesia grotesca que atravessa os séculos desde Brueghel, Bosch, Rabelais e Goya, até desaguar no barroco brasileiro. Ali, nas ruas sujas, estão as três raças brasileiras entrelaçadas na esperança de um casamento grupal doído: negros, brancos e índios dando à luz um grande bebê mestiço e gargalhante, ensinando que a vida é uma arte e a lógica careta é a morte.

Arnaldo Jabor
(Publicado originalmente no Segundo Caderno do Jornal O Globo em 08 de fevereiro de 2005)

 

Artigos