Em Nilópolis, disciplina de jesuíta

 
          Numa cena do filme “A missão” (Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1986 e Oscar de melhor fotografia), os jesuítas Gabriel (Jeremy Irons) e Fielding (Liam Neeson) conversam sobre penitência quando o primeiro diz ao segundo: “Isso aqui não é uma democracia, mas uma ordem religiosa.” Gabriel tem convicção de que seu argumento é capaz de pôr um ponto final na discussão. Politicamente incorreta, a frase faz sentido não só porque a obediência pode ser entendida como conseqüência da fé mas também porque o contexto do filme exigia determinação, disciplina e muita garra. Nascida no período da Contra-Reforma, a Companhia de Jesus enfrentava o desafio de, em território desconhecido, catequizar guaranis de cultura diferente da européia. Nesse caso, nada mais inconveniente do que gastar energia questionando a hierarquia.
          Determinação, disciplina e muita garra também marcaram o desfile da Beija-Flor, que trouxe um enredo sobre as missões jesuíticas no Sul do Brasil. Atribuir a disposição na passarela à inspiração religiosa seria uma explicação romântica. Mais aceitável me parece a consciência dos sambistas de Nilópolis de que é preciso fôlego para ter bom desempenho.
          Nenhuma escola ensaia tanto quanto a Beija-Flor. Nenhuma tem sambistas, a maioria da comunidade, tão engajados com o objetivo de fazer um bom desfile.
          É claro que a apatia é fatal em qualquer competição. Mas, em Nilópolis, a idéia de que é necessário mostrar serviço é mais forte do que em outras agremiações. Está no DNA. Não da escola fundada em 1948, e sim daquela que ganhou o primeiro campeonato em 1976, acabando de uma vez por todas com a alternância de quatro décadas de Portela, Mangueira, Salgueiro e Império Serrano no primeiro lugar. Formalmente, a agremiação nascida na década de 40 e a zebra de três décadas depois são a mesma. Mas é como se fossem duas.
          Ao conquistar o título inédito, a azul-e-branco de Nilópolis assumiu características tão marcantes que o episódio correspondeu a um renascimento. Em 1976, a crônica carnavalesca já havia estabelecido quais eram as escolas tradicionais. Quem viesse a ganhar, ameaçando a estabilidade, fatalmente só seria entendida como emergente. Por mais que o ambiente cultural da Baixada Fluminense nos anos 40 tivesse semelhanças com a região central do Rio (berço do samba) das primeiras décadas do século passado, a linguagem possível era a de novo-rico.
          E digo linguagem porque se trata de algo ligado à comunicação entre a Beija-Flor, o público e a crítica — e não necessariamente à natureza da azul-e-branco.
          Esta tinha algo em comum com a história de escolas tradicionais. Tanto que, ao gravar um disco na década de 80 com sambas-enredos antológicos, Martinho da Vila incluiu o da Beija-Flor de 1962: “Dia do Fico”, de Cabana.
          Mas quem se interessou naquele momento em questionar se a agremiação que vencera as tradicionais tinha algo digno de nota em sua história? Se não era equívoco reduzi-la a um corpo estranho no clube das vitoriosas? Ninguém. Nem a própria Beija-Flor. Mais fácil para todos foi entender o título inesperado como triunfo emergente. E da forma de expressão emergente fez parte a ostentação do luxo, ainda que gastando menos do que se imaginava, graças à capacidade do carnavalesco Joãosinho Trinta e do figurinista Viriato Ferreira de fazer alegorias e fantasias de impacto com material barato.
          O DNA da nova campeã foi composto também da disposição típica do sangue novo e do cuidado para evitar erros. Afinal, a Beija-Flor só valia pelo que apresentasse na ocasião, enquanto outras poderiam recorrer ao prestígio da história para compensar um mau desempenho, contando com a condescendência do júri. A Mangueira, por exemplo, pôs Cartola, Nelson Cavaquinho e Carlos Cachaça e outros mestres na comissão de frente em 1977.
          Impossível ignorar o prestígio cultural desses pioneiros e julgar do ponto de vista estritamente técnico. Naquela época, o show coreografado das comissões de frente ainda não era fato consumado e o carisma de sambistas da antiga pesava.
          Para se impor como grande, portanto, a Beija-Flor precisou de muito fôlego. Não para vencer só um campeonato, pois isso não bastaria para ser definitivamente uma protagonista. A Estácio de Sá, por exemplo, foi campeã do Grupo Especial em 92 e este ano desfilou no Grupo de Acesso B. O tri da azul-e-branco em 1976/77/78 não era um momento de exceção, mas sim parte de um processo de longo prazo. A partir de 78, outras escolas chegariam ao título pela primeira vez: a Mocidade, em 1979; a Imperatriz, em 1980.
          Para mudar o mapa do poder, apenas alegria e espírito folião não bastariam. O desafio exigiu gana, que a Beija-Flor mantém até hoje. A tensão permanente e o pulso firme do diretor-geral de carnaval Laíla espantam quem busca apenas descontração no desfile. Mas Nilópolis leva a competição a sério. E, sob esse aspecto, o enredo sobre as Missões tem tudo a ver.
          Jesuítas não são de brincadeira. Sobretudo diante de tarefas espinhosas. Eram da Companhia de Jesus os padres que enfrentaram o demônio no filme “O exorcista”. Obviamente, a imagem do exorcismo é sombria demais quando confrontada com o carnaval. Mas há uma associação de idéias possível: a Beija-Flor tem disciplina de jesuíta.

Marcelo de Mello é jornalista
(Publicado originalmente na seção Opinião do Jornal O Globo em 10 de fevereiro de 2005)

 

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