Pague e vire enredo

 

          A venda de enredos pelas escolas de samba, escondida sob a palavra patrocínio, mudou a cara do carnaval do Rio. Não foi só ela, claro. A concentração de poder de decisão na Liga das Escolas de Samba também.
          O patrocínio, pelo menos como feito na última década, teve um efeito radical. Em nome da "profissionalização" do desfile, passou-se à escolha de enredos chamados, nos bastidores, de caça-níquel.
Essa busca desenfreada reduziu a diversidade dos temas - e a liberdade da festa. O espaço da poesia, da brincadeira, da crítica social e política ou mesmo do tema histórico "puro", isto é, de enredos que não interessam diretamente ao capital ou à política, ficou mínimo. Foi-se o tempo de "Sonho de um sonho", "Tupinicópolis", "E por falar em saudade", "O descobrimento do Brasil"?! Agora é preciso ter sempre um apelo para o mercado - empresarial ou político?!
          Os carnavalescos "rebolam" para evoluir nessa pa$$sarela. A Beija-Flor vai começar pelo Big Bang e passar por Atlântida antes de desembarcar no município mineiro que banca o enredo da escola.
          Quem defende com veemência o patrocínio como feito hoje costuma argumentar que o espetáculo das escolas de samba cresceu demais e ficou caro demais, e que é isso mesmo que o público que vai à Sapucaí quer ver: superescolas de samba S.A, superalegorias.
          Dirigentes de escolas de samba, em defesa dos patrocínios, afirmam que não é possível montar um desfile para disputar o campeonato com menos de R$ 4 ou R$ 5 milhões. Como os recursos próprios do carnaval (subvenção da Prefeitura, direito de transmissão, venda de CDs etc) somam algo entre R$ 2 e R$ 2,5 milhões, dizem que é necessário recorrer a eles.
          Como então uma escola sem patrocínio foi vice-campeã duas vezes seguidas (a Unidos da Tijuca)?
          A Tijuca provou nos dois últimos anos que é possível sim disputar o campeonato com enredos fora da órbita de interesses de governos e empresas. Pode ser difícil mas é possível. Ela chegou lá com os tais R$ 2 milhões e pouco. Certamente a escola e seu carnavalesco gostariam de ter mais dinheiro e talvez até procurem patrocínio nos próximos anos. Mas os resultados que a Tijuca já obteve contradizem a argumentação da necessidade absoluta do patrocínio para a sobrevivência do que chamam espetáculo.
          Em conversas com carnavalescos (em off, claro), encontramos quem afirme que R$ 2,5 milhões é um valor razoável para se montar um desfile.
          Mais dinheiro (em tese!) sempre produzirá um espetáculo maior. Mas "maior" não é necessariamente igual a "melhor". Maior não é necessariamente igual a emocionante, empolgante, prazeroso, criativo.
          Com enredos vendidos a empresas ou governos o desfile das escolas de samba ficou melhor? Não vi ninguém chorar de emoção ao cantar as glórias do leite condensado. A escola estava bonita?! Sim. Mas escola de samba é só isso?
          Para não ficar no disse-me-disse, o ideal seria que as escolas abrissem publicamente seus custos, revelassem seus gastos com material, contratação de mão-de-obra, organização de eventos. Isso permitiria um debate transparente sobre o financiamento do desfile e talvez encontrássemos um modelo mais equilibrado, em que o dinheiro não determinaria com tamanha força o que os sambistas vão cantar. Uma sugestão que aparece aqui ou ali em debates é a criação de um fundo único, no qual os patrocinadores depositariam os recursos - que seriam divididos por todas as escolas. O retorno para os investidores seria dado no conjunto do desfile, não na apresentação de uma agremiação específica. Esta idéia poderia devolver às escolas a liberdade de escolha e desenvolvimento dos temas.
          Por mais que dirigentes e carnavalescos afirmem e reafirmem que não há intervenção dos patrocinadores no enredo, já ficou mais do que claro que não é bem assim. Não é só o tema que se impõe. Há exigências. Pode ser "o nome da cidade ou estado ou o slogan da empresa na letra do samba". Ou então "fantasias e camisas de diretoria para participação de convidados (do patrocinador) no desfile". E até "o samba não deve citar isso ou aquilo porque são manifestações culturais do estado vizinho".
          Ainda que se fale em "investimento cultural" (claro que em parte é), o foco da maioria dos patrocínios parece ser "a mídia que a escola vai render". A escola de samba deixa de ser um acontecimento de cultura popular e vira veículo de propaganda - de governos e empresas. Não é a primeira vez que isso acontece na história das escolas. Aconteceu no Estado Novo, aconteceu na ditadura.
          O problema, como dito antes, é a massificação dessa lógica do dinheiro: "pague e vire enredo". Em 2006, teremos pelo menos quatro estados (mais três estão em negociação), um governo estrangeiro (através de uma empresa pública), o governo federal e um município botando dinheiro e esperando em troca o "espaço de mídia" para divulgar suas opiniões, suas obras, suas graças ou seus produtos. O samba vira jingle.
          Será que o coração dos sambistas bate mais forte por um jingle?
          O Império Serrano, no ano em que comemorava 50 carnavais, "vendeu" o seu enredo. Preferiu cantar Beto Carreiro. Não há alma de sambista que cante com vontade um samba para Beto Carreiro sabendo que devia estar cantando parabéns para você, em homenagem aos fundadores da agremiação. A escola caiu para o Grupo de Acesso. Nem tudo é dinheiro. A paixão exige reconhecimento, identificação. E enredos patrocinados às vezes (talvez muitas vezes) impedem o sambistas de reconhecer a sua escola - a força que o move, que o motiva a desfilar com garra.
          Nem é preciso ir tão longe no tempo. A Mangueira, no carnaval passado, não conseguiu convencer a Sapucaí e muitos mangueirenses de que aquela que desfilava ali era a Mangueira. Foi um choque de identidade, um curto-circuito nos corações mangueirenses, que viram uma escola de samba que não era a que amavam - isso por conta de um enredo sobre energia, com dinheiro de duas grandes empresas públicas, que não eletrizou ninguém.
          Quem critica o patrocínio como é feito, ou quem pede para se discutir as contas do carnaval, é chamado de romântico. "O carnaval mudou". "É isso mesmo". "Não tem volta". É o que dizem. Mas a gente não precisa acreditar nisso. As coisas sempre podem melhorar.
          Porque o carnaval mudou, mas ainda é carnaval. Ou não é mais?

Aloy Jupiara
(Publicado originalmente no Jornal O Globo em 07/01/2006)

 

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