Descaso e negligência com a festa do povo

 

          Nas minhas composições sempre fui muito influenciado pelo samba. Mas devo confessar que nunca me envolvi diretamente com o carnaval, com exceção de umas poucas idas ao Sambódromo, e de ter sido parte da comissão de frente na Mocidade no ano em que a escola homenageou Elis Regina. Como os ensaios foram na antiga Churrascaria Plataforma, você pode imaginar a nota que recebemos.
          Por isso esse foi um ano atípico para mim, pois no domingo resolvi dar uma volta pela Avenida Rio Branco.
          Desde garoto ouço falar dos blocos de embalo que fizeram e, como descobri, ainda fazem o carnaval de rua do Rio de Janeiro ser (aquela famosa frase feita) “a verdadeira festa do povo”.
          Eu percebi que sabia muito pouco sobre carnaval.
          O que encontrei lá foi muita alegria, tranqüilidade, crianças no colo dos pais ou ainda mesmo bebês nos seus carrinhos, jovens, idosos, gringos, muitos grupos de clóvis (ou bate-bolas), palhaços, negas-malucas, todos envolvidos apenas por um sentimento, a brincadeira. Mas todos esses grupos se rendiam a passagens dos blocos. O Bafo da Onça, Os Boêmios do Irajá, Os Arengueiros da Mangueira e principalmente o rei dos blocos, o Cacique de Ramos,
          E não foi por acaso que foi o Cacique quem fechou as três noites de desfiles na Av. Rio Branco.
          Fiquei sabendo pelo presidente Bira, que fundou o bloco há 45 anos, que o Cacique de Ramos nunca deixou de desfilar desde que foi fundado.
          E o Bira me contou muito mais.
          Uma coisa que muitas pessoas devem saber, mas que talvez outras (como é o meu caso) não saibam, é que o Cacique de Ramos tem uma grande importância na formação da música brasileira. De lá saíram artistas como Zeca Pagodinho, Arlindo Rodrigues, Dudu Nobre, o Fundo de Quintal (que foi criado pelo próprio Bira) e muitos outros. Fiquei sabendo também que o bloco já tem a sua história registrada em livro, “Um bloco que deu samba”, que o Cacique de Ramos já foi tema de estudo para faculdades e muitos, mas muitos outros fatos que fazem parte da história da nossa música.
          E, por tudo isso, fiquei sem entender por que uma festa que deveria ter tanta importância foi tratada de forma tão negligente.
          Posso até não saber muito de carnaval, mas as lembranças que tenho de todas as vezes que passei pelas ruas do Centro do Rio semanas antes da festa são as de ver a avenida enfeitada.
          Pois desta vez não havia nada.
          Não havia decoração e nem iluminação.
          Coisas simples como arquibancadas para o povo assistir ao desfile, nem pensar.
          Banheiros químicos suficientes para a quantidade de foliões que freqüentam a avenida? Devem ter achado que era desnecessário.
          Com toda certeza alguém deve ter uma explicação na ponta da língua para esse descaso, mas será difícil convencer qualquer pessoa que esteve lá.
          Para dar uma boa resposta a essas perguntas e convencer quem foi brincar no único lugar onde não se precisa pagar nada para se divertir nos três dias de carnaval, onde não se precisa comprar uma fantasia cara, e é só entrar na festa do jeito que se quiser, essa pessoa vai ter que rebolar.

Marcos Valle
Marcos Valle é compositor
(Publicado originalmente no jornal O Globo em 03/03/2006)

 

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