Milagre na Sapucaí

 

          Gosto é realmente uma coisa que não se discute. Todo ano é a mesma coisa: tem sempre quem não fique satisfeito com o resultado da apuração do desfile das escolas de samba do Rio. Eu mesma jamais poderia ser jurada de concurso de Escola de Samba; daria 10 para tudo e para todos – se não fosse pelo quesito em si, seria pela consideração ao trabalho, à dedicação e ao espetáculo. Não há dúvida de que a subjetividade tenha lá seu peso, mas existem regras e requisitos que devem ser lavados em consideração na hora de dar as notas. Parece que, nesse Carnaval, prevaleceu a subjetividade.
          Em 12 de agosto de 1928, o cantor e compositor Ismael Silva e sambistas do bairro do Estácio fundaram a primeira escola de samba do Rio de Janeiro: a Deixa Falar. O primeiro desfile oficial aconteceu em 1935, na antiga Praça Onze e, por mais de 30 anos, foi realizado sem a cobrança de ingresso. No fim dos anos 60, o Carnaval começa a ganhar os contornos atuais, passando a acontecer, primeiro, na avenida Presidente Vargas e, depois, na Marquês de Sapucaí. Em 1984, durante o governo de Leonel Brizola, foi construída a Passarela do Samba (Sambódromo), projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer - um complexo com 700 metros de extensão e capacidade para abrigar 62 mil espectadores.
          Hoje, o espetáculo das Escolas de Samba não só é auto-sustentável, como também dá muito lucro. As Escolas têm participação no que é arrecadado com a venda de ingressos, de CDs e DVDs e nos ganhos com as transmissões de TV - num espetáculo assistido por mais de 2 milhões de pessoas, no mundo todo. Asseguram cerca de 30 mil empregos fixos, diretos e indiretos, e são as maiores responsáveis por tudo que se arrecada com o turismo, na cidade do Rio de Janeiro, durante o Carnaval. Um exemplo de empreendimento capitalista bem sucedido no mundo das artes.
          Este ano, o maior espetáculo “artístico-popular-capitalista” da terra, de criação exclusivamente brasileira, premiou um enredo socialista revolucionário, patrocinado, pela primeira vez na história do Carnaval carioca, por uma empresa estrangeira com fins evidentemente políticos. Sim, porque a vitória foi do tema – a escola que o desfilava era mera formalidade, poderia ter sido qualquer uma que tivesse topado o patrocínio da estatal venezuelana do Petróleo, PDVSA, maior empresa do país governado por Hugo Chávez, que doou cerca de U$ 1.500 milhão.
          A estatal venezuelana aproveita o carnaval e divulga a campanha “Petróleo para a integração dos povos” , com anúncios em rádio, TV e ônibus, incluindo, ainda, um outdoor gigante no Sambódromo. Nos últimos anos, a PDVSA, sócia da Petrobras num projeto de US$ 2,5 bilhões, abriu no Pará 12 dos 80 postos de gasolina prometidos pela Petrobrás, para o Norte e o Nordeste do Brasil – a Petrobrás não abriu nenhum ainda. O chefe da Seção de Política e Comunicação da Embaixada da Venezuela, Nelson Gonzalez, informou que há interesse em ampliar presença em países da região, alinhados ideologicamente com o governo Chávez.
          O enredo "Soy loco por ti, América - A Vila canta a latinidade" pretendeu contar a saga do continente e das miscigenações, pelas mãos do carnavalesco Alexandre Louzada. Carros alegóricos homenageavam figuras como Che Guevara e Gabriel García Marquez, passando pela festa dos mortos mexicana. O carro que fechou o desfile fez uma homenagem a Simón Bolívar, com um boneco do “herói da independência sul-americana”, com 13 metros de altura. Joãozinho Trinta puxou a escola numa cadeira de rodas motorizada – o que, sem dúvida nenhuma, pode ter influenciado o caráter subjetivo das notas majoritárias da Vila Isabel. E, se fosse só por isso, teria sido talvez até meritório.
          A escola contou com 3.880 integrantes e 34 alas. De acordo com o carnavalesco, Alexandre, a escola entrou na avenida para fazer uma crítica aos colonizadores que, segundo a visão dele, só pensavam em tirar proveito da terra, trazendo com eles a morte espiritual do continente, massacrando as crenças e culturas locais. Apaixonada pela agremiação, a atriz Letícia Spiller desfilou pela escola e, ao término da apresentação fez uma declaração, a um repórter da TV Globo , dizendo que já estava mesmo na hora de despertar o espírito revolucionário do povo e de promover a união da América Latina... Blá, blá, blá,... E terminou: “Hay que endurecerce pero sin perder la ternura jamás!”. Mostrou a que veio...
          A primeira vez que a Unidos de Vila Isabel ganhou o Carnaval carioca foi em 1988. No ano passado, a escola ficou em 10º lugar. Este ano, praticamente não recebeu votos nas enquetes de sites e blogs e nem das pesquisas feitas no próprio Sambódromo, sobre quem seria a campeã de 2006 e não mereceu um único prêmio do Estandarte de Ouro – prêmio do jornal O Globo –, que divulga seus premiados antes da apuração oficial dos resultados do desfile das escolas de samba.
          Desde a sua criação, o Estandarte de Ouro sempre esteve mais ou menos em sintonia com os resultados oficiais. A escola que vence o Carnaval, se não coincide com a agraciada com o prêmio do Estandarte de Melhor Escola de Samba, certamente vence em pelo menos uma das outras 19 categorias que já fizeram parte desta premiação (hoje são só 15 categorias). E, justificadamente, a escola que recebe o prêmio de Melhor Escola de Samba acaba sendo também premiada em outras categorias.
          Fenômeno igual a este que ocorreu com a Vila Isabel, agora em 2006, aconteceu somente em outras três ocasiões. Em 1990, quando a Mocidade Independente de Padre Miguel venceu o Carnaval e não recebeu nenhum prêmio do Estandarte, que agraciou a Mangueira, a oitava colocada oficialmente com nada menos que 6 prêmios (Melhor Escola, Puxador, Samba Enredo, Bateria, Ala das Baianas e Passista Masculino). Em 1999, quando, agora do outro lado, a Mocidade Independente de Padre Miguel ganhou os prêmios de Melhor Escola, Melhor Enredo, Mestre-Sala e Revelação, do Estandarte de Ouro e foi a quarta colocada no desfile oficial - a campeã do Carnaval, a Imperatriz Leopoldinense, não recebeu nenhum prêmio do Estandarte. E, finalmente, em 2004, cuja campeã do Carnaval, a Beija-Flor, não foi premiada em nenhuma das 15 categorias do Estandarte de Ouro e a Império Serrano, nona colocada no resultado oficial, levou 5 prêmios (Melhor Escola, Samba Enredo, Bateria, Puxador e Ala das Baianas).
          Até bem pouco antes dos resultados da apuração, os jornais anunciavam que cinco escolas estavam na briga pelo título: Mangueira, Beija-Flor, Unidos da Tijuca, Império Serrano e Viradouro. Entretanto, contrariando todas as previsões, venceu a Vila Isabel. Tanto que, no Sambódromo, havia muito pouca gente para torcer pela escola durante a apuração. Até mesmo um dia depois da vitória, Sandra Anenberg, na bancada do Jornal Hoje , da TV Globo , de quinta-feira dia 2 de março, deixou escapar: “A Unidos de Vila Isabel ainda comemora a inesperada vitória...”.
          Enquanto isso, lá na Venezuela os jornais destacavam em suas manchetes do dia 2 de março, a vitória da Unidos de Vila Isabel, no Carnaval do Rio. Um deles, o "Reporte" assegurou que mais de 500 “bolivarianos” viajaram para o Rio de Janeiro, com todas as despesas pagas, para animar o desfile da Vila. O que justificaria os gritos de “é campeã”, surgidos do nada e sem justificativa plausível, a partir das arquibancadas do Sambódromo, logo após o término da apresentação da escola, e quem estava lá sabe disso. "Enquanto em Caracas o povo recebe um carnaval de segunda (...), mais de 500 bolivarianos viajaram ao sambódromo do Rio de Janeiro, com todas as despesas pagas, para enaltecer o Bolívar carnavalesco da escola de samba paga pela 'Choroesa' ", diz a matéria do jornal, referindo-se ao roubo de dinheiro público em que a PDVSA estaria supostamente envolvida.
          A Vila Isabel levou o título de Campeã do Desfile das Escolas de Samba de 2006, com 397,6 pontos e a Grande Rio ficou com o segundo lugar, por ter perdido 0,2 pontos, devido a um pequeno atraso para ultrapassar a linha que demarca o fim do desfile, ficando com iguais 397,6 pontos (quando teria ficado com 397,8, se não fosse pelo erro) e por ter perdido no quesito de desempate – Samba Enredo – por 1 décimo (39,8 para a GR e 39,9 para a VI). A Viradouro, terceira colocada, ficou com 397,2 pontos, a Mangueira, em quarto, com 397,1 pontos e a Beija Flor, em quinto, com iguais 397,1 pontos, desempatados no quesito seguinte ao samba-enredo, já que as duas ficaram empatadas neste quesito, cada uma com 40 pontos. A Unidos da Tijuca amargou um sexto lugar, com 396,7 pontos. Como se pode observar, é uma disputa acirrada, onde qualquer décimo pode fazer a diferença entre perder e vencer.
          A indicação do Corpo de Julgadores é atribuição exclusiva do Presidente da LIESA, Ailton Guimarães Jorge. Há quem tenha sido convidado a integrar o corpo do júri por ser célebre no que faz e outros que simplesmente enviaram um currículo para a LIESA e conseguiram a vaga. Para cada um dos 10 quesitos em julgamento (bateria, samba-enredo, harmonia, evolução, enredo, conjunto, alegorias e adereços, fantasias, comissão de frente e mestre-sala e porta-bandeira), foram selecionados quatro Julgadores, perfazendo um total de quarenta. Eles foram apresentados à imprensa no dia 23 de janeiro de 2006. Os 40 julgadores ficaram dispostos no Sambódromo em 4 módulos, cada um com 10 integrantes – um de cada quesito. Todas as notas diferentes de 10 devem, obrigatoriamente, ser justificadas por escrito, no Caderno de Julgamento, o que só deve ser feito após o desfile da última Escola a se apresentar na Segunda-feira de carnaval.
          No quadro de notas do desfile de 2006 não se pode dizer que tenha havido nenhum disparate absurdamente incoerente. Entretanto, há notas que alimentam certa curiosidade. A Unidos da Tijuca, por exemplo, no quesito Fantasia recebeu de apenas um dos julgadores a nota 9,3, quando todos os outros deram 10. Este mesmo julgador deu 9,5 para a Rocinha, desta vez, porém, já em sintonia com os outros julgadores, uma vez que essa escola foi a que teve as notas mais baixas, não só nesse mas em todos os outros quesitos – tanto que ficou em último lugar. O mesmo julgador também foi desproporcional, ao dar 9,3 para um Salgueiro que recebeu 9,8 – 10 – 10 dos outros julgadores.
          Há alguns outros poucos exemplos deste tipo, mas que não vale a pena ficar analisando, por causa do contexto de suposta subjetividade em que estão inseridos. Mesmo porque teria que se admitir que Grande Rio tivesse se atrasado de propósito. Haveria ainda a possibilidade de se empenhar em verificar, por exemplo, se as tais desproporcionalidades teriam acontecido em notas de julgadores que estivessem num mesmo módulo, apesar de estarem julgando quesitos diferentes. Se levarmos, então, para o lado da aplicação de conhecimentos matemáticos que podem encontrar padrões, detectar o uso de probabilidades, etc., aí a coisa poderia ir longe demais!
          É claro que todo mundo pensa na possibilidade de ter havido alguma desonestidade, principalmente quando acontecem surpresas como a deste Carnaval. Mas, é melhor que se fique com outras alternativas – a do milagre, por exemplo! E realmente é o que deve ter acontecido, já que, mesmo sendo surpreendente, a vitória da Vila Isabel não provocou um único protesto sequer na mídia, nem mesmo por parte dos dirigentes de outras Escolas, ao contrário do que costuma acontecer em todos os outros anos. Deve ter sido milagre mesmo!
          Por outro lado, o Brasil teve a oportunidade de mostrar para o mundo que Hugo Chávez pode mandar e desmandar até na nossa mais mundialmente conhecida forma de expressão cultural – o Carnaval. Pudemos passar a mensagem, ainda que nós brasileiros saibamos ser mentirosa, de que nosso povo “fecha” com o delírio do “filhote de Fidel Castro”. O candidato a Imperador da América Latina, Hugo Chávez, teve a chance de gritar ao planeta que o Brasil não é fantoche do imperialismo norte-americano – optou por servir a um império mais próximo que surge de um país bem menor: a grande Venezuela. Prova pior que dar a vitória para a escola patrocinada por Chávez foram as fotos que circularam o mundo, mostrando as bandeiras da Venezuela nas mãos dos integrantes que comemoravam a vitória na quadra da Vila Isabel. O desfile das Escolas de Samba do Rio mostrou, ao vivo, a pelo menos 2 milhões de pessoas que o Brasil se vende por qualquer milhão de dólar – seja em forma de doação para Escolas de Samba ou em forma de doações para campanhas eleitorais, disfarçadas de investimentos em publicidade.
          Mas, como tudo está ótimo e formidável, todos sorriem e ninguém contesta nada, já se pode até começar a pensar nos temas para o desfile de 2007 que poderiam ser coisas do tipo:

  1. Vitória do Povo: Lula não sabia, foi traído, deu a volta por cima e foi reeleito.

  2. Vencendo o Imperialismo: A Luta dos Oprimidos.

          O enredo falaria da inevitável queda do império norte-americano. Começaria mostrando o império estadunidense dominando, destruindo e oprimindo milhares de povos e culturas do planeta; passaria pela derrota norte-americana no Vietnã e iria até a grande vingança do 11 de setembro; a partir daí, a América Latina se uniria, sob o comando do libertador Hugo Chávez e ajudaria o mundo a aniquilar os EUA; no final, a vitória de um mundo livre, justo e fraterno, formando um reinado mundial, governado por seus libertadores: Fidel Castro, Hugo Chávez e Bin Laden. Um paraíso!

Christina Fontenelle
A autora é formada em Comunicação Social - Jornalismo, pela PUC-RJ. Contato: chrisfontell@gmail.com

(Publicado originalmente pelo site
Mídia Sem Máscara em 06 de março de 2006)

 

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