Lembrando o Carnaval

 

          Carnaval do Rio... Como tudo mudou! Lembro que, quando garoto, era na esquina da rua das Laranjeiras que víamos os blocos passar, todos vestidos de índios -alguns mais organizados, como o da Fábrica Aliança.
          Às vezes, o pai nos levava para assistir à passagem dos préstimos no hall de entrada do Clube de Engenharia, e ali ficávamos, trepados em bancos, proibidos de ir à rua, acompanhando o espetáculo. Recordo que, numa noite, um senhor tentava acender um charuto, e eu, inadvertidamente, procurei apagá-lo com um lança-perfume. O fogo subiu pelo rosto do homem, que, furioso, bengala na mão, se aproximou do banco onde estávamos e indagou: "Quem fez a brincadeira?". Aí, como tantas vezes acontece, a generosidade desapareceu, e uma senhora interveio, indignada, apontando para mim: "Foi esse menino, aí. Não ia falar, mas ele está rindo".
          Depois de casado, nunca pensei em Carnaval, quando, para surpresa minha, fui convocado por Brizola para projetar o Sambódromo do Rio. Uma aventura de que me lembro com muita saudade, pela decisão com que ele e Darcy Ribeiro levaram adiante o projeto, contra todo tipo de objeções -não haveria tempo para construir o Sambódromo, a época das chuvas seria obstáculo impossível de vencer... e até para um córrego, que diziam passar por baixo das arquibancadas, apelaram. Mas Brizola e Darcy não deram bola para tais provocações, e o Sambódromo foi inaugurado na data prevista.
          Durante os três meses que durou a construção, muitas vezes visitei a obra, acompanhado de Darcy e José Carlos Sussekind, responsável por sua estrutura, e, apesar do prazo curto que tínhamos pela frente, Darcy não se cansava de propor novas soluções. "Vamos fazer salas de aula debaixo das arquibancadas?", sugeriu um dia.
          E lá está a escolinha que imaginou -e que ao prefeito de Paris tanto espantou: "Nunca vi nada parecido", disse. Recordo, com a obra quase concluída, Darcy a me pedir: "Oscar, faz qualquer coisa marcando o Sambódromo". Trata-se do arco que projetei e que foi construído na praça da Apoteose, aplaudido com entusiasmo por Brizola e Darcy. E no qual Cesar Maia resolveu pregar mais um dos inúmeros anúncios da prefeitura que espalha pela cidade -apesar de ser obra realizada pelo governo de Brizola e tombada pelo Estado.
          Pois bem. Sempre considerei que é durante as grandes festas populares que as palavras de ordem devem se fazer ouvir, levando aos participantes protestos contra tudo que significa injustiça social ou ofensa a nossa soberania. E lamento que isso não ocorra com maior freqüência, como uma resposta a este clima de miséria e opressão em que vivemos.
          Muitos anos atrás, lembro-me bem, estava sozinho num hotel em Brasília e assistia pela TV ao desfile da Escola de Samba São Clemente. Para o meu espanto, o tema era: "O menor abandonado neste mundo de ilusão". E fiquei a escutar o canto, triste, a lembrar a miséria que corre pelo país, as crianças mais pobres a perambular pelas ruas, dormindo nas calçadas, enquanto outras, em número muito menor, usufruem todos os privilégios que o dinheiro permite.
          Mal havia desligado a televisão, uma amiga me telefonou. Falei-lhe do desfile, e ela me interrompeu: "Oscar, não chore". É claro que eu não chorava, embora -quem sabe- pouco faltasse para isso. Não era apenas a miséria que me magoava mas também a injustiça imensa, que precisamos eliminar.
          Tudo isso explica o entusiasmo com que acompanhei a passagem da Escola de Samba Unidos de Vila Isabel no Sambódromo. Era a concretização da idéia que sempre me acompanhou, de levar às festas populares as reivindicações mais urgentes. Dessa vez, o tema era a defesa da unidade e da integração dos povos que compõem a América Latina. Não podia haver assunto mais apaixonante neste momento em que vemos esse continente tão ameaçado.
          E senti que a campanha de defesa da América Latina atingia uma nova etapa, mais clara e vigorosa -como a atuação surpreendente e corajosa de Chávez impõe. E o desfile da Vila Isabel prosseguiu, com a escultura monumental de Bolívar a lembrar que as coisas se repetem, que é urgente a reorganização política da América Latina, agora ameaçada pelo império odioso de Bush.
          Pouco conhecimento guardava daquela figura extraordinária... Artigos publicados, conversas políticas no escritório, sobretudo o livro de Gabriel García Márquez, "O General em seu Labirinto". O assunto me atraía, e recorri à enciclopédia. Lá estava a história desse herói venezuelano, todo feito de coragem e desprendimento.
          E fiquei a ver, emocionado, como o povo do Rio de Janeiro participava de tudo aquilo com especial entusiasmo, a se identificar com a luta política que sentimos crescer em seus corações.

Oscar Niemeyer
Oscar Niemeyer tem 98 anos, é arquiteto e um dos criadores de Brasília (DF). Tem obras edificadas na Alemanha, Argélia, EUA, França, Israel, Itália, Líbano e Portugal, entre outros países
(Publicado originalmente na seção Tendências e Debates do jornal Folha de São Paulo em 19 de março de 2006)

 

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