O Carnaval que passou: dúvidas mais freqüentes

 

Quando se procura o verdadeiro espírito do Carnaval, o que se acha é o triunfo do estoicismo

          É aceitável que o presidente venezuelano Hugo Chávez tenha roubado a cena, na Marquês de Sapucaí, com a vitória da escola (Unidos de Vila Isabel) e o enredo (Soy Loco por Ti, América!) que patrocinou?
          Poderia ter sido pior. Chegou-se a informar que o próprio Chávez participaria do desfile. Não é absurdo supor que, ao se ver diante de platéia tão receptiva, se visse tentado a discursar. Também não é desarrazoado imaginar que se fizesse acompanhar do amigo Fidel Castro. E que o amigo também aproveitasse o ensejo para mandar seu recado. As possibilidades de desdobramentos para pior são infinitas.
          O enredo da escola falava em unidade latino-americana, mas era evidente que, no fundo, celebrava o bolivarianismo de Chávez. Carnaval é para isso?
          Não há nada nesse quadro que contrarie o espírito carnavalesco. Houve tempo em que o Carnaval era feito para ironizar os costumes ou as figuras públicas. Era o Carnaval das marchinhas. O Carnaval das escolas de samba é, cada vez mais, para celebrá-los. Uma escola celebra o Rio São Francisco, outra a Amazônia, outra Poços de Caldas. O Carnaval está aí para saudar o bom funcionamento da sociedade e reconhecer o esforço das autoridades constituídas.
          Mas e as mulheres peladas? Elas não representam o espírito de libertação e de quebra de regras que se costuma associar ao Carnaval?
          Engano. Elas estão ali só para despistar. Cada escola impõe-se a obrigação de se apresentar uma mais impecavelmente que a outra. Isso exige disciplina, rigor, pontualidade. Não é à toa que os componentes das escolas falem tanto em "sacrifício" ou em "dar tudo". Quando se procura o verdadeiro espírito do Carnaval, em lugar da dionisíaca entrega aos prazeres, o que se acha é o triunfo do estoicismo. Nos desfiles de São Paulo, uma madrinha de bateria teve o cabelo incendiado pelo mau funcionamento do perigoso adereço que trazia na cabeça e, mesmo com queimaduras de segundo grau, não deixou de sambar. Eis o que é o Carnaval. Impõe como precondição, dos que dele participam, a disposição de deixar-se imolar.
          Que estaria querendo dizer o imenso Simón Bolívar que encimava o principal carro alegórico da Unidos de Vila Isabel?
          Bolívar, segundo alguns, era a ilustração perfeita ao inspirado refrão do samba vencedor: "Para bailar La Bamba, cair no samba / Latino-americano som / No compasso da felicidade / Irá pulsar mi corazón". Outros, ao contrário, imaginaram que El Libertador, ao ouvir tais versos, repetia a pergunta que se fez no leito de morte: "Como sairei eu deste labirinto?".
          O sucesso de Chávez não induzirá outros líderes mundiais a imitá-lo?
          Sem dúvida. Há informações de que o presidente Bush já entrou em contato com a Imperatriz Leopoldinense, com vista ao próximo Carnaval. O enredo, sugerido em reunião entre os melhores estrategistas da Casa Branca, seria: "Dos homens-bomba à guerra civil no Iraque: a apoteose da democracia no Oriente Médio". O vice-presidente Dick Cheney teria concordado em figurar como destaque num carro alegórico, com um rifle de caça nas mãos. Da outra ponta do carro, num elaborado efeito especial, sairiam codornas e perdizes. Cheney fingiria mirar nelas, mas, em vez disso, atiraria a esmo contra as arquibancadas. A encenação simbolizaria o poder incontrastável de uma potência imperial. Não procedem, por outro lado, as informações de que Condoleezza Rice se disporia ao papel de rainha da bateria.
          As pessoas que ocupam os camarotes do Sambódromo realmente gostam de samba?
          Nem sempre. No camarote da Brahma, havia um DJ para providenciar alternativas. O funk chamado Bonde do Tigrão fez muito mais sucesso do que a escola Viradouro e transformou o espaço numa pista de dança mais animada do que a outra. Os camarotes são freqüentados por pessoas classificadas pelos curiosos epítetos de "globais" ou "celebridades". São espécimes muito estranhos.
          Nota-se da parte dos meios de comunicação certa hesitação entre cobrir os desfiles propriamente ditos e os camarotes. Isso é justo?
          Isso é natural, na fase de transição que atravessamos. Houve época em que o importante era o desfile, e não se ligava para o que ocorria nos camarotes. Aliás, houve época em que nem havia camarotes. Depois, os camarotes foram impondo sua presença. Hoje disputam as atenções com os desfiles, mas não está longe o dia em que esse conflito se resolverá. A idéia é fazer com que as escolas de samba desfilem com os olhos grudados nos camarotes. Elas estão sendo treinadas para isso. Em breve, a comissão de frente, os destaques, a bateria, a ala das baianas, tudo será composto de pessoas que ali estarão apenas a pretexto de, na pista, desfrutar um privilegiado ponto de observação dos camarotes. O espetáculo terá se deslocado definitivamente para o que hoje é considerado (erroneamente) platéia e os meios de comunicação não mais hesitarão quanto ao objeto de seu interesse.

Roberto Pompeu de Toledo
(Publicado originalmente na revista Veja em 05 de março de 2006)

 

Artigos