O samba de terreiro

 

          A primeira escola de samba surgiu no Estácio de Sá em 1929. Foi a Deixa Falar, fundada por Ismael Silva, Alcebídes Barcellos entre outros. Nesta época, já existiam outros agrupamentos, mas estes não eram organizados. O nome “escola de samba” surgiu no Estácio porque este pessoal (que fez do samba, sincopado e deu a ele as características que conhecemos hoje) eram os professores do samba, os mestres, assim como na Escola Normal do Rio de Janeiro (também situada no Estácio) saíam professores. Eram eles os professores, a turma que foi precursora do samba.
          Existe até um samba (A primeira escola) de Pereira Matos e Joel de Almeida que comprova isso: “A primeira escola de samba surgiu no Estácio da Sá/ Eu digo isso e afirmo, e posso provar/ Porque existiam naquele tempo, os professores do lugar...” O próprio Cartola de Mangueira tirava o chapéu para os professores.
          Nos anos 30, as escolas desfilavam cantando sambas quaisquer (só a primeira parte) e os melhores versadores improvisavam na segunda parte. Estes sambas saíam do terreiro das escolas (hoje, quadra). O samba de terreiro era, portanto, o que dava sustentação a escola de samba. Era praticado durante todo o ano e em fevereiro saía para a Praça 11 (local dos desfiles).
          Este samba escolhido não tinha nada a ver com o enredo. Por exemplo: o desfile a Mangueira tinha um tema, todos iam fantasiados neste mote mas o samba era um samba de amor. Paulo da Portela, fundador da famosa agremiação de Oswaldo Cruz, foi o primeiro a cantar um samba que tinha relação com o enredo. Pelos idos de 30, ele cantou um samba assim: “Vou começar a aula perante a comissão, muita atenção que eu quero ver se diplomá-los posso/ Salve o ‘fessor', dá nota a eles senhor/ Quatorze com dois doze, noves fora tudo é nosso”. Na pista, os portelenses iam vestidos de aluno...
          Este formato de samba enredo (usando os sambas de terreiro no desfile) acabou quando Getúlio Vargas baixou uma norma obrigando os sambas enredo a terem uma temática histórica. Aí o samba de terreiro ficou restrito ao próprio terreiro e deixou de ser cantado em fevereiro. Nesta mesma época, Vargas passou a censurar os sambas com a temática da malandragem. Surgiu, então, o ‘malandro regenerado'.
          Com o passar dos anos, os sambas de terreiro começaram a tocar nas rádios e serem gravados. Aí surgiu uma contradição: ao mesmo tempo que profissionalizava compositores, a ida destes sambistas para o rádio e para o disco desvirtuava o ritual das escolas. Já nos anos 30, José Gonçalves, vulgo Zé com Fome (depois Zé da Zilda), sambista de Mangueira, foi proibido de cantar um samba seu porque estava tocando nas rádios.
          Porém, enquanto as escolas preservaram suas características, o samba de terreiro foi preservado (mesmo tendo virado samba de quadra). A partir do momento, entretanto, em que as escolas viraram “Super Escolas S.A.” e os sambistas perderam seus espaços dentro de casa, o samba de terreiro desapareceu. Aluízio Machado e Beto sem Braço cantaram em 1982: “Super escolas de samba S.A./ Super alegorias/ Escondendo gente bamba/ Que covardia”.
          Seu Jair do Cavaquinho, um ano antes de sua morte setenciou: “O samba de terreiro não existe mais. Os jovens da escola não tem mais o espírito que nós tínhamos. Eles só querem saber de fazer um samba para gravar e ganhar dinheiro”.
          Cartola e Carlos Cachaça, dois dos maiores nomes do samba e que fizeram muitos sambas para a Mangueira desfilar, viram com muita tristeza a deturpação do samba (tanto na quadra como na avenida). Um samba enredo derrotado deles, “Tempos Idos”, já falava: “... e muito bem representado com inspiração de geniais artistas, o nosso samba, humilde samba, foi de conquistas em conquistas/... já não pertence mais à Praça, já não é samba de terreiro, vitorioso ele partiu para o estrangeiro...”
          Hoje em dia, o samba de terreiro sobrevive nas rodas de samba. Em algumas quadras de escola, em bares, em quintais...

André Carvalho
(jornalista e pesquisador de samba)

 

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