A Beija-Flor mente sobre a África

 

          Homenagear a África está na moda. Louvar reis africanos, como provou a Beija-Flor neste Carnaval, rende graves notas 10 na Quarta-Feira de Cinzas. Mesmo que, para isso, seja preciso mudar a história, calar os historiadores e contar velhas mentiras politicamente corretas sobre a escravidão.
          A África foi tema de três escolas do Grupo Especial do Rio neste ano. Todas -Porto da Pedra, Beija-Flor e Salgueiro- ocultaram verdades que doem.
          Nos enredos, os africanos são sempre os heróis libertadores que contrariam uma ordem opressora. Os brancos fazem o papel de Odete Roitman do caso -os vilões que pela força oprimiram o continente.
          Uma escola menor, a Unidos de Cosmos, chegou ao preconceito às avessas com o samba-enredo "Sou Cosmos 100% Negro, da Abolição aos Dias Atuais". E o samba-enredo campeão, "África: do Berço Real à Corte Brasiliana", canta assim: "Oh! Majestade negra, Oh! Mãe da liberdade, África: o baobá da vida Ilê Ifé, Áfricas: realidade e realeza, axé".
          Será que entendi direito? Estariam os autores do samba chamando a África de "mãe da liberdade"? Será que eles não sabem que o tráfico de escravos começou muito antes de os europeus chegarem lá, que a escravidão foi extremamente lucrativa para reis africanos e que foram eles os que mais se debateram contra a abolição?
          Eram negros africanos os homens que atacavam povos no interior da África, capturavam escravos, matavam fugitivos, construíam forquilhas para prender vários negros pelo pescoço, organizavam caravanas em fila indiana que duravam meses, marcavam a ferro incandescente as iniciais do comprador ("acima do umbigo ou sob o seio esquerdo", como descreveu Pierre Verger) e negociavam preços para os escravos.
          Também eram africanos vários colegas de europeus nos navios tumbeiros, traficantes riquíssimos e até compradores, já que escravos eram essenciais nas fazendas africanas. Fazendas que, como observa o historiador Alberto da Costa e Silva, "pertenciam ao rei e aos grandes do Daomé e se baseavam num tipo de trabalho escravo que pouco diferia do americano em dureza e crueldade".
          Seria essa a "luz que vem do Daomé" que o samba da Beija-Flor homenageia? Não se trata de preconceito com africanos.
          Ao contrário. Preconceito é crer que nações africanas eram tribos coitadinhas e que não estavam sujeitas, como europeus, aos costumes do seu tempo.
          É bom saber que a Beija-Flor não caiu na vitimologia barata, comum em letras de rap, e preferiu enaltecer a riqueza da África. Só faltou dizer a origem dessa riqueza: a escravidão. Por que as escolas de samba contam apenas metade da história da África? Por que nenhuma delas homenageia a luz que veio da Inglaterra, sem a qual até hoje os africanos achariam OK comprar gente?
          Em vez disso, a Beija-Flor preferiu louvar reis que traficavam escravos e que, quando depostos, foram escravizados e mandados ao Brasil. Aqui, esses reis geraram descendentes. É provável que amanhã, no desfile da campeã Beija-Flor, eles estejam na Sapucaí louvando antigos traficantes de escravos e reclamando das maldades cometidas só pelos... europeus.

Leandro Narloch
O jornalista LEANDRO NARLOCH é editor da revista "Superinteressante"
(Publicado originalmente no Jornal Folha de São Paulo em 23 de fevereiro de 2007)

 

Artigo-229
Artigos