A Liga do Peloponeso

 

          E de repente uma nuvem paira sobre as cabeças dos habitantes da península do Peloponeso...
          No longo e contínuo processo de mutação pelo qual passou o carnaval, sempre se notou a necessidade de adequar-se ao seu tempo, de sempre se apresentar camaleônico e em ressonância com a sociedade. Certamente o carnaval que hoje vemos tem sua espinha dorsal fundamentada em tempos remotos, em sociedades remotas, mas renovado em uma nova ordem, seguindo novas diretrizes e aglutinando princípios outrora inimagináveis quando nos remetíamos ao seu principal mote. Hoje habitamos uma península, o Peloponeso, onde é fácil concluirmos quem está no papel da democrática Atenas e da militarista e oligárquica Esparta, a esperta.
          Partimos de um conhecimento vulgar, popular e atingimos um estágio altamente científico que tem em seu âmago a valorização cada vez mais acentuada da capacidade organizacional de uma escola de samba e, mesmo atingindo patamares antes impensáveis, segue, frágil em seu caminho, mas firme em seu propósito, embora muitas vezes tudo nos seja apresentado de forma completamente descaracterizada. Logicamente que toda e qualquer sociedade se vale destes conceitos para galgar uma situação bem menos anárquica e, assim, atingirem certo estágio organizacional. Uma dose homeopática de positivismo no discurso? Sim, mas é assim que trabalham as escolas de samba deste novo pensar do carnaval, onde um bom planejamento estratégico pode ser o hiato entre primeiras e as últimas.
          Na grande maioria das vezes, os engenhosos anos 90 são vistos como ponto de partida para tudo este processo de transformação e tecnicismo, todavia, é salutar a observação de que na década mencionada houve, na verdade, uma colheita de tudo o que foi plantado nos anos 80. A criação de uma gerência mais eficaz no que diz respeito aos fatores mercadológicos e a conseqüente facilitação da aliança entre mídia e carnaval fez toda a diferença e serviu de substância catalisadora neste processo que por si só já se desenhava de forma inevitável. Ora, como disse lá nas primeiras linhas e sempre faço questão de sublinhar, a dinâmica social está atrelada a todo e qualquer processo cultural.
          Na época da ditadura, por exemplo, a produção cultural deste país foi única, com destaque para o magnífico Chico Buarque. Obviamente que a liberdade de expressão é um direito que nos assiste, mas ilustro aqui somente as interferências externas que afetam tanto de forma positiva como negativa a produção cultural. Certa vez, ao participar da organização do evento “Anos de Chumbo, Anos de Chico” que tinha também como propósito mostrar a relação das produções culturais com o caminhar da política e da economia ficou claro que tudo faz parte de um processo altamente interligado, onde a cultura seja ela qual for, tem uma razão de ser, de existir. Nada é criado por acaso. O Movimento Armorial de Ariano Suassuna não foi originado do nada, da mesma forma que a Semana de Arte Moderna de 22 não veio a passeio.
          Com efeito, a atmosfera político-social em que estavam mergulhados os anos 80 e 90 favoreceram esta guinada de foco na produção cultural das escolas de samba, caminhando com a redemocratização do país no cenário interno e a Nova Ordem Mundial em âmbito mais abrangente. Nos anos 80 presenciamos um dos momentos mágicos do carnaval carioca, pois ali observávamos um sincronismo perfeito entre organização, alegria, samba, beleza, harmonia, dinheiro; enfim, “tempos idos que não voltam mais”. E ali mesmo, em meio a todo o esplendor de equilíbrio áudio-visual, já se notava a disputa entre as escolas empresariais e as que permaneciam com suas tradições. A vitória da Vila Isabel em 1988 com “Kizomba, Festa da Raça” é simbólica,uma vez que decreta o fechamento de um ciclo. A partir dali a Liga do Peloponeso daria as cartas e se tornaria cada vez mais onipotente e onipresente.
          Assim, com legitimação da Engenharia do Carnaval, tudo convergiu para um nível zero de entropia e as escolas, na tentativa de adequação ao sistema, acabam validando e incorporando a suas práticas o profissionalismo e a conseqüente busca por uma equação perfeita que resultasse em êxito no desenvolvimento de suas atividades antes, durante e depois do carnaval. O palco da folia perde um pouco a magia e ganha ares de batalha, os grêmios aderem ao rigor espartano e marcham para uma guerra, que é alimentada por um ciclo vicioso de muita onerosidade e pouca essência. Os habitantes do império carioca de Momo foram transportados para uma nova arena, uma arena onerosa, viciosa e pouco emotiva. Ser profissional agora não se trata apenas de uma questão de escolha, mas sim de uma forma de sobrevivência, aliás, a única forma de sobrevivência. E Esparta vence Atenas na Guerra do Peloponeso...
          É preciso que se busque um parâmetro para avaliar a organização, os mecanicismos adotados pelas escolas com a finalidade de obtenção de êxito em suas ações, pois o equilíbrio visto nos anos 80 foi completamente substituído por uma prática bastante artificial de se gerir uma escola de samba. Os anos 90 e 2000 passaram uma borracha em todos os conceitos cultivados na “década perdida”. Ora, mas qual a linha que serve de hiato entre o anárquico e o cartesiano, oriundo de uma política progressista? O carnaval em sua essência tem traços espontâneos, que foram renegados em virtude da exigência de um mercado altamente competitivo, mas que também dá sinais de fragilidade.

Philip Nascimento
(Publicado Originalmente no Site Tradição do Samba em 12/09/07)

 

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