CARNAVAL, utopia barroca[1]

 

          Carnaval como representação cultural não é novidade, não nasceu ontem, não é expressão exclusiva das gentes dessa terra brasilis. Essa festa vem de longe, não exatamente assim como a sentimos e vivemos. Podemos dizer que o carnaval nasce em uma certa cultura barroca, lá pelos idos do século XVI.
          Século XVI porque, como destacamos em outra ocasião, em nossa tese de doutoramento, consideramos que a cultura barroca abrange o maneirismo. Neste sentido, utilizamos a categoria maneirista-barroca para explicitar esse movimento cultural que tratamos como um continuum de expressões sociais, políticas, econômicas e religiosas e que se estende desde meados do século XVI, na Europa, avançando pelo século XVII até o século XVIII, quando é denominado Rococó.
          Sobre a duração desse movimento artístico cultural as opiniões variam. Wölfflin[2] (2000), por exemplo, afirma que em relação a uma “determinação cronológica mais exata”, o barroco está delimitado pelo Renascimento e encontra seus limites no Neoclassicismo, que se inicia em meados do século XVIII. Para ele, o barroco transcorre por um período de duzentos anos.
          Outros estudiosos sentem e pensam o barroco como um “estado de consciência”[3], um sentido estético, que toma de assalto o imaginário de tempos em tempos. Para estes, existem expressões do estilo barroco nos vários continentes, em épocas diferenciadas no espaço-tempo. Por exemplo, certos pesquisadores da cultura afirmam que a época contemporânea é barroca, por isso se referem a uma "barroquização” do mundo atual[4].
          Eugenio d'Ors é o precursor da idéia de que o estilo barroco aparece em momentos diversos do tempo; ele entende esse movimento como expressão estética que surge em diferentes culturas, em tempos diversos, e se caracteriza pela dominância das formas irregulares e dos sentidos contraditórios.
          “Maneirismo, Barroco (alto, perfeito ou clássico) e Barroquismo ou Rococó”[5], estilo de época excessivamente amplo e difícil de manejar. Barroco pós-moderno, neobarroquismo ou pós-modernidade barroquizada. É um estilo diverso que não apresenta um conjunto fechado de interpretações. Porém, em qualquer tempo e sob qualquer denominação, o que se destaca na estética barroca é seu poder transgressor. Essa característica que consideramos lembrar, tão singularmente, a cultura brasileira.
          Então, não é com a origem ou com a cronologia barroca que queremos nos ocupar, mas com as suas formas de significação; porque sabemos que os sentidos culturais ultrapassam tempos e espaços. Enquanto signos podem ser atualizados, reavaliados, re-significados[6]; e como expressão de uma sociedade se deixam levar pelos imaginários esperando serem possuídos.
          Enfim, o interesse pela expressão barroca e o que desejamos nela ressaltar, para esta 10ª Semana da Cultura Popular, cujo tema CARNAVAL, utopia barroca, escolhemos; diz respeito: (1) a percepção de que esse estilo deve ser observado como um tipo de sensibilidade estética que reflete o modo de vida de uma cultura; e (2) que elegemos esta metáfora CARNAVAL, utopia barroca, para valorizar a idéia de “carnavalização” da existência (diária) como uma forma de resistência, de esperança e, conseqüentemente, de integridade humana, quer dizer, identidade, pertencimento e reconhecimento social.
          Para compreender esteticamente uma cultura, é preciso privilegiar o conhecimento a partir da percepção de que a sociedade é constituída tanto por parâmetros racionais quanto está alicerçada por parâmetros “afetivos”, isto é, por sentidos de comunidade, pertencimento e solidariedade, como afirma o sociólogo Michel Maffesoli. Observar a cultura como manifestação estética exige o entendimento de que o sentir e o pensar estabelecem formas de sociabilidade, ou práticas sócio-culturais que são tão objetivas quanto estão permeadas por imagens, imaginações, imaginários — subjetividades.
          A estética é um discurso sobre o corpo, afirma Eagleton (1993). A representação estética diz respeito às maneiras como o mundo atinge os corpos em suas superfícies sensoriais. Antes de se referir à arte ela é a ciência das percepções, das sensações, das paixões, a mediadora entre o conceitual e o sensorial, participando ao mesmo tempo do racional e do real.
          E em relação ao carnaval, ser possuída/possuído por este imaginário tem um sentido visceral. É um estado, uma condição de dominação, é um projeto, uma paixão, uma obsessão. É assim que falam todos aqueles que se inebriam pela energia do carnaval brasileiro. Talvez aí se encontre a singularidade da nossa expressão carnavalesca, sua face orgiástica e genuinamente transgressora.
          Como bacantes, em suas diversas expressões de Norte a Sul desse nosso território, seguimos livres, lascivos e insanos um certo deus da alegria, um estrangeiro, que chegou à Grécia exigindo homenagem. Chamava-se lá Dionísio, aqui se chamam Marias e Joões, se chamam foliões. Esses deuses estrangeiros em sua própria terra, os brasileiros, pertinazes em suas lutas árduas. Brasileiros, tão carentes de direitos, repletos de deveres.
          Deuses de muitas faces e muitas representações, que Marcel Detienne, em Dioniso a céu aberto (1988), compara a Shiva, o deus dançarino hindu. Deus da transformação, que destrói o que é preciso destruir, para transformar.
          E o carnaval termina quarta-feira de cinzas: a alegria desmedida, o trabalho e o esforço de uma vida. Sim, cada ano é uma vida! Todo o esforço vira cinza, e é das cinzas que começa a renascer, logo depois de acabar, para ressurgir, fênix triunfante, em cada folião, em cada bloco, em cada escola, em toda expressão carnavalesca a cada ano, ou a cada dia como expressão do imaginário transgressor brasileiro: lúdico, zombeteiro, brincante. Que transgride porque carnavaliza, também, a vida cotidiana.
          Os espaços abertos na vida pela “carnavalização” da ordem social são únicas formas de “saída”, ou de sobrevivência ou de restabelecimento da sanidade, em condições de existência onde prevalecem os estados de opressão.  E as formas de opressão são de nuances muito variadas, às vezes muito sutis, e acontecem em instâncias e em momentos inesperados.
          A carnavalização da vida possibilita dar respostas para os impasses da existência. As respostas são estratégias, pois, trata-se de um jogo, o “jogo da sobrevivência”. Na vida existe sempre alguma coisa “em jogo”, isto pressupõe “perder” ou “ganhar”. Em vários momentos da existência individual e cultural “jogar” significa “escapar” diante de determinados acontecimentos. Tal afirmativa certamente poderá ser comprovada por muitos de nós, ao lembrarmos de momentos de tensão, quando há muito pouco ou quase nada para fazer.
          Entendemos a loucura coletiva, ou a carnavalização da existência como uma forma de ludibriar os acontecimentos, de negar a ordem, ou ainda, de “brincar” com as realidades vividas. Esse tipo de comportamento lúdico “desvia”, pelo menos por um certo tempo, da fuga “definitiva”: a escolha pela morte ou por uma incontrolável perturbação. Trata-se de um “jogo”, de ganhar tempo para que outras possibilidades apareçam, para que as “dominações” não ocupem todo o espaço da existência. Tragicidade lúdica!
          A carnavalização da existência faz parte, também, do movimento que Michel Maffesoli chama de “barroquização” do mundo contemporâneo. Além disso, citar a força do elemento lúdico na constituição da vida social condiz, muito precisamente, com a capacidade transgressora das culturas barrocas: rompendo com normas, convertendo sentidos, reformulando o mundo, vivendo utopias. O que demonstra a singularidade e capacidade do imaginário barroco de subverter parâmetros estabelecidos. O barroco impõe uma nova postura.
          Em nossa tese usamos a metáfora do jogo para analisar o universo lúdico barroco. Ao “jogar” experimenta-se um certo sentido de liberdade, Joel Neves (1986), aponta no barroco mineiro a reivindicação sobre o direito de ser livre, ele diz que “Minas tem uma só religião — chama-se liberdade”, sua vocação nativista e revolucionária cristalizou-se em uma expressão cultural — o barroco (p.134).
          Penso que podemos estender essa análise e declarar a vocação da cultura brasileira em prol da liberdade. O apelo da gente brasileira pelo lúdico, pelas festas, pelos jogos, pelo carnaval, é, ao mesmo tempo, a afirmação dos valores da terra, quanto é a marca da sua resistência. Então, como, ainda, afirma Neves (1986), “o barroco como culto é, então, um movimento em direção à liberdade, emergência de uma consciência de que ‘aqui é o nosso lugar'”, “este lugar é nosso”, nossa pátria (p. 134).
          O carnaval é a alegoria, a representação da força subversiva que move a esperança de que um dia teremos o país que merecemos. O carnaval brasileiro é utopia, é transgressão imaginal materializada em cores, em formas, exuberâncias, riquezas, criatividade. E como se disse, é utopia vivida a cada dia, e que se materializa como uma apoteose ou, melhor, uma loucura coletiva, pelo menos uma vez ao ano. E não se confunda o que está sendo dito aqui com qualquer interpretação sobre a idéia de alienação.
          Este é o melhor momento para rechaçar qualquer tentativa de acusação sobre a característica “alienadora” de certas manifestações culturais. Consideramos que não faz sentido chamar de alienados aqueles que suportam e que convivem com grandes limites para a realização das suas existências pessoais e sociais, dia-a-dia. Não pode haver alienação em relação ao que se experimenta: prazer, dor, fome, violências, injustiça; só há alienação quando se pensa saber a Verdade sobre coisas que não se conhece.
          Muitos tratam como alienação o que é uma absoluta falta de condição para mudar realidades historicamente construídas. Absoluta falta de condição em decorrência da ausência e da precariedade de todo o sistema político-social: de educação, da saúde, da justiça, de segurança, da habitação etc. As manifestações lúdicas de um “povo” não são exemplos de alienação, pelo contrário, são formas de comprovação da sua resistência, da integridade cultural diante de sistemas opressores, enganadores, dementes.
          Imaginário cultural brasileiro. Este imaginário que alguns estudiosos de fora, “os gringos”[7], tanto celebram como expressão de um novo tempo cultural, exemplo para as outras e as novas civilizações. Outros sentidos, novas subjetividades, utopias.
          Entendemos utopia como possibilidade de criar cultura, estabelecer sentidos e práticas sociais. Neste sentido, utopias são desejos que surgem como fruto do imaginário cultural em busca de novas respostas para as ações humanas. Por esta razão Agnes Heller (1998) diz que “a associação de Utopia a inexeqüibilidade é completamente injustificável”.
          
Boaventura Santos (2001) diz que a utopia enquanto exploração imaginativa de novas possibilidades e novas formas de vontade para configurar  outras sentidos do viver se opõe à necessidade do que existe, só porque é assim que existe. Para este autor um impulso de pensamento utópico requer amplo conhecimento da realidade; isto porque, uma utopia nasce do que é vigente; quer dizer, ela é uma contraparte integrante do que se deseja ver em outros moldes.
          Tomamos a cultura brasileira como expressão ideal-típica dos rituais de carnavalização e de inversão dos esquemas culturais, A inversão da ordem ou a carnavalização da vida social é característica dessa cultura que apresenta face lúdica, face barroca.
          O lúdico é uma estratégia, uma possibilidade de transgredir a moral hipócrita que sorrateiramente alguns desejam naturalizar, como sendo a expressão de “toda” uma cultura. Como expressão do que somos, na tentativa de anestesiar os sentimentos e as ações frente às injustiças e os desmandos gerais. Ledo engano!
          A ordem, qualquer que seja ela, pensa ser possível anestesiar o imaginário, e é aí que ele cresce e se fortalece, na penumbra. No espaço da sombra, sob a luz excessiva dos poderes autoritários e prepotentes, dos excessos da razão que se julga auto-suficiente. Fatores que produzem uma espécie de cegueira causada pelo brilho do poder, que ofusca palavras e promessas, aniquilando compromissos.
          O carnaval brasileiro é utopia, é transgressão imaginal materializada em cores, em formas, exuberâncias, riquezas, criatividades, triunfalismo e ostentação. É a representação alegórica das nossas formas de resistência.
          O triunfalismo é uma outra marca da cultura barroca, só que aqui o que emerge absoluto é o poder da massa. O triunfalismo está ligado tanto à ordem absolutista quanto à extremada religiosidade que caracterizou, historicamente, a longa jornada dessa cultura. No carnaval brasileiro o triunfal se faz expressão do povo através da arte.
          Para explicitar estilisticamente o Carnaval como expressão barroca, ressaltamos a estética de luz-e-sombra, bem ao gosto do estilo pictórico.
          O conceito de pictórico torna-se bastante adequado para representar essa festa porque através dele pode-se provocar contrastes de luz e de sombra. E entendê-los como elementos mutuamente referentes assim como a vida e a morte. O estilo pictórico estimula a percepção de movimento, de dinamismo, de vitalidade que ajuda a exaltar o carnaval brasileiro.
          O estilo pictórico como marca do barroco remete para a largueza dos traços, sua repetição incontrolada causa a indefinição dos contornos, a sensação de falta de limites. Também, o esbanjamento de tons, de cores, de luz, de massas e de volumes ajuda a criar a atmosfera estética carnavalesca: desmedida, ostensiva, triunfal. Toda esta impressão de extravasamento, de luxúria e de alegria (quase) insana.
          O pictórico pode ser exemplificado por esta citação de Wölfflin (2000), que tomamos como uma metáfora sobre o jogo carnavalesco: “o movimento disperso de uma massa de luz (...) atrai para cá e para lá, sempre para mais longe, sem haver em parte alguma um limite, um fim determinado” (p.41).
          Algo passageiro, mas com muito impacto, tensão e intensidade, estas marcas do estilo pictórico barroco e carnavalesco. Há um exagero quase reverenciado, uma necessidade frenética de extrapolar as formas. “Na sua expressão suprema o estilo busca profundezas insondáveis” (idem), quer demonstrar o indemonstrável. E pelos contrastes de perspectiva aparece a idéia de espaços não delimitados. A intenção é permitir que o infinito encontre sua mais potente representação: uma extensão ilimitada provocada pelo efeito de massa, pelo efeito da massa.
          Efeito pictórico que Wölfflin[8] destaca como “o ‘inapreensível' (o ilimitado)”. Essa mesma expressão de pasmo, de êxtase, que o nosso carnaval provoca.

 

Bibliografia:

  • BECK, U. “O Ocidente Brasileiro”, in Caderno Mais!, Folha de São Paulo, 23 de Maio de 1999.
  • DETIENNE, M. Dioniso a céu aberto. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
  • EAGLETON, T. A Ideologia da Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
  • FERREIRA, Héris Arnt. Le neobaroque dans litterature contemporaine: une etude anthropologique. Paris, 1993. 384 f. (Doctorat en Sciences Sociales) Université Rene Descartes, Paris V.
  • GERMAIN, B. “O Barroco - Um Estado de Consciência”. IN, ÁVILA, Affonso. Barroco Teoria e Análise. São Paulo: Perspectiva, 1997.
  • GIOSEFFI, M.C. Retórica, Persuasão e Imaginário Lúdico-Profético na “História do Futuro” do Padre Antônio Vieira. Rio de Janeiro, 2005, 255 f. (Doutorado em Psicologia Social e Institucional) Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ.
  • HATZFELD, Helmut. Estudos sobre o Barroco. São Paulo: Perspectiva, 2002.
  • HELLER, A; FEHÉR, F. A Condição Política Pós-Moderna. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998.
  • MAFFESOLI, M. “Brasil é modelo de comportamento”, in O Globo. Segundo Caderno, Rio de Janeiro, 2001.
  • ______. Au Creux des Apparences. Paris: Plon, 1990.
  • NEVES, J. Idéias Filosóficas no Barroco Mineiro. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1986.
  • PERNIOLA, M. Pensando o Ritual.São Paulo: Studio Nobel, 2000.
  • _____. Enigmas. Portugal: Bertrand Editora, 1994.
  • SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
  • SANT'ANNA, A. R. Barroco do quadrado à elipse. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
  • SANTOS, B. S. A crítica da razão indolente. 3 ª ed. São Paulo: Cortez, 2001.
  • VILLAÇA, N. Paradoxos do Pós-Moderno: sujeito & Ficção. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1996.
  • WÖLFLLIN, Heinrich. Renascença e Barroco. São Paulo: Perspectiva, 2000.
  Notas:

[1] Texto apresentado na 10ª Semana de Arte e Cultura Popular, 23 a 26 de Outubro de 2007, na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

[2] Renascença e Barroco, p.26.

[3] Germain Bazain, 1997.

[4] Maffesoli (1990), Santos (2001), Sant'Anna (2000), Ferreira (1993), Villaça (1996), Perniola (1994 e 2000).

[5] Hatzfeld, 2002.

[6] Sahlins, 1990.

[7] Ulrich Beck, 1999; Maffesoli, 2001.

[8](2000, p. 42).

Maria Cristina Gioseffi
(Texto apresentado na 10ª Semana de Arte e Cultura Popular, 23 a 26 de Outubro de 2007, na UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro])

 

Artigos