Neoconservadorismo

 

          Sou daqueles que se emocionam com comissões de frentes tradicionais. Daqueles que adorariam ver uma dúzia de distintos senhores, fraque e cartola, saudando o público e pedindo passagem para o mundão de gente que vem logo depois. Sou daqueles que gostam de bom samba, samba de verdade, de baiana livre qual pião, de bateria cadenciada, de evolução bem realizada, de alegorias não tão grandiosas. Gosto de passista, de samba no pé, do gingado das cabrochas. Gosto da alegria fluida que é a essência do carnaval.
          A julgar por estes atributos, muitos me colocariam o colar do conservadorismo exagerado, do romantismo utópico. Raciocínio por demais simplista, diga-se de passagem, já que também aprecio um bom terremoto renovador. É curioso como vivemos em uma sociedade que adora enquadrar seus indivíduos em moldes e dualismos de toda espécie. Quem, por exemplo, nunca leu uma entrevista pingue-pongue com a famosa cartilha de questões cerebrais: “Branco ou preto?” “Chico ou Caetano?” “Samba ou Rock? “Rio ou São Paulo?  “PT ou PSDB?” “Ilha ou Castelo de Caras?” “Dove ou Phebo?”.
          Com relação à nossa folia de todo verão, não funciona de forma diferente. Ante o turbilhão de mudanças a que assistimos ano a ano, acabou-se por também ser criado dois pólos antagônicos para definir quem vive, entende e gosta de samba: a legião dos conservadores e a dos digamos... Liberais.
          E então me vem à memória o desfile do Império Serrano de 2006. Quer coisa mais “liberal”, pra cima, vanguardista, do que uma apresentação como aquela? E ali estavam todos os ingredientes de uma passagem dita “conservadora” – fantasias, alegorias, temática e canto clássicos – tradicionalismo do calçado dos integrantes da comissão de frente ao chapéu que compunha a indumentária da majestosa velha guarda.
          Não, não estou aqui com a bandeira do puritanismo hasteada, lançando as bases da revolução de retorno às origens. Mas não se pode deixar de questionar o caminho unilateral pelo qual têm se sucedido as transformações no carnaval, relegando tanto as conquistas de outrora, como também a própria essência de alguns aspectos e quesitos, ao grupo de acesso da tábua dos mandamentos daquilo que é julgado.
          Uma bateria, por exemplo, não deixa de ser ousada porque não traz inovações das mais espetaculares e emocionantes. Muito pelo contrário. Não há ousadia maior dentro do espírito da grande festa, sobretudo se levarmos em conta o andamento “metralhadorístico” contemporâneo, do que uma orquestra cadenciada, terreno fértil para a boa execução do mais brasileiro dos ritmos, nosso bom e velho samba.
          Este que, aliás, também virou artigo cristalizado e intocável nas mãos dos “revolucionários liberais”. Dançaram os cantos na roda-vida das mudanças, foram incorporados os famosos dois refrões que emolduram as duas partes que dão corpo às obras, e não há Cristo que desça na Terra para promover uma arrefecida na fórmula. “Difícil ser e fazer diferente, vivemos outros tempos”, cismam em bradar os bravos defensores.
          Para aí vir o mesmo Império já citado, em 2004, e mostrar, com um samba quarentão, que as teorias são vãs, sendo possível o impossível no reino da folia. Nesta ótica, com a licença da utilização dos acima criticados estereótipos, não estariam os liberais contemporâneos tomando os rumos do neoconservadorismo? Haveria compatibilidade entre as expressões evolução e inflexibilidade?
          A verdade maior do carnaval é a de que ele não tem uma verdade absoluta. E que as coisas só se resolvem mesmo nos cerca de 700 metros do “palco iluminado”. Certas tendências e elementos, claro, são tomados por vanguarda, outros caem na obsolescência e se transformam em adereços de nossas lembranças. Entretanto, não se pode deixar de ser estabelecido um relativo pé atrás com relação ao fato de uma importante manifestação popular parecer se encasular em novos valores como direcionamento único, a nota só do samba.
          Afinal de contas, olhar para frente, invariavelmente, é não se esquecer de também olhar para trás, de ousar com a segurança e o lastro do berço de onde tudo emergiu. Faz-se necessário que discutamos, por exemplo, o rompimento com as receitas pasteurizadas da espécie de “nova academia” sambista, com o enjaular estético das obras promovido pelo número previamente acordado de linhas, além de repensarmos o direcionamento excessivo imposto pelas sinopses.
          Se até mesmo os professores de Física já passaram a questionar a validade das famosas fórmulas que sempre obrigaram os alunos a decorar em períodos de prova, seria prudente que se analisasse com frieza aonde queremos levar o nosso maior festejo cultural e subjetivo. Sobretudo no seio deste cenário de enquadramentos objetivos dos últimos tempos. Afinal de contas, personagens conservadores, liberais e neoconservadores a parte, somos todos, acima de tudo, foliões. Foliões em essência.

Fábio Fabato

 

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