Há puxa-saquismo da 'inteligência comentarista de Carnaval' com algumas escolas divinas e poderosas

 

          'Oi, aqui é Deus, e eu gostaria de falar com João Pimentel, crítico de música do jornal O Globo”. “Claro, Deus. João, telefone para você. É Deus!”. “Oi, Deus, pode falar!”. “Querido, eu estou te ligando para te dizer que o ano passado eu realmente me orgulhei de, como Criador, ter criado o Amapá e Macapá, patrocinadores da Beija Flor, na letra do samba que você tanto elogiou, mas o problema é que este ano a letra do samba da Viradouro tá dizendo que eu mandei buscar na mata a proteção do biocombustível da Bahia, patrocinadora da Escola de Niterói, e gostaria que você desmentisse esta informação através da sua crítica, porque não fica nem bem usar o nome do Senhor em vão, sobretudo numa escola que no ano passado ficou em sétimo lugar”.
          É preciso que o grande público perceba que há uma indulgência, um puxa-saquismo da “inteligência comentarista do Carnaval carioca” (e aqui dou a mão à palmatória, o próprio Daniel Pereira de O DIA também adere ao coro), que não vê nenhum problema na liberdade artística de algumas escolas divinas e poderosas, e esculhamba a mesma articulação em outras.
          Não é sobre a Liga que escrevo, nem sobre seu júri, nem sobre o direito da Beija de exercitar a viagem carnavalesca. Denuncio aqui que certas escolas podem e outras não podem segundo as criaturas que “formam opinião na imprensa carnavalesca”. Pois vem do apimentado crítico musical João a mais contundente linha direta com o Deus Olorum de que se tem notícia na história da humanidade.
          Ao afirmar que “o samba da Viradouro é politicamente correto, mas Olorum não disse isso não”, ele se arvora porta-voz e detentor da fala de Deus, portanto, um de seus únicos (quiçá só ele) representantes na terra dos homens e guardador de suas verdades. Tentando atacar minha sandice de afirmar “que o Criador disse”, ele transforma-se no oposto, no que afirma que “o divino não disse”. Será que podemos ter certeza do discurso de Deus? Ou isto é derivativo?
          Explicando: Olorum é entidade suprema de uma cultura basicamente oral, portanto sem escrituras, cuja plêiade de Deuses, os Orixás, encarnam manifestações de forças da natureza. Um é a energia do vento, outro da cachoeira, um outro da lama, outro do trovão, e tem um, Ossanha, meu amado Deus das ervas, que diz que das plantas virá a salvação de todos os males.
          Como a cana que produz etanol é planta, e como mamona, dendê, girassol, pinhão manso e canola são plantas que produzem biodiesel, na minha maionese carnavalesca de amar a negritude, e de tentar sempre puxar a brasa para a sardinha da inteligência da mãe pátria terra da vida, a África, eu concluo (com um dinheirinho da Petrobras, é claro, me patrocinando e me dando condições de um superespetáculo, porque ninguém é de ferro), que os pretos são o máximo e que o feixe de conhecimento Yorubano sempre cantou a pedra de que, há milênios, era preciso respeitar a ecologia, a natureza, e arrancar das forças equilibradas da paisagem, como a chuva e o arco-íris, seu fundamento, seu axé, seu poder (aqui é preciso dizer que eu leio, admiro muitíssimo, e sempre bato cabeça para o Ney Lopes).
          Mais que isso, acredito sinceramente que a tecnologia moderna de crer no mistério do cosmo (tipo física quântica e química transcendental), que tudo isso é tributário do magnífico pensamento negro. Insisto em ir além do exotismo de dança e esporte. Acredito na ciência de Ewe, acho que toda a semiótica moderna já estava lá, na imagética africana. Tem também quem ache que eles só eram burrinhos e limitados, dançantes e bons de corridas tipo São Silvestre.
          Bio é vida, seres viventes. Combustível é força motora, produtora de energia. Claro que isto pode ser só a Petrobras biocombustível. Mas no discurso afro-descendente que a Sapucaí é (ou deveria ser), isso pode ser, no desfile de Carnaval, ensinamento ancestral que sempre foi pule de dez para os negros escravos que vieram para a Bahia.
          Mais um detalhezinho: Pimentel, Pimentel, politicamente correto é noção que norteia branco soberbo (nem sei qual a cor de tua pele, pois não te conheço, mas não é desta que falo, trato de um certo ponto de vista que vai se achar umbigo da hermenêutica, centro da glória do pensar, sobretudo quando isto coincide com o ponto de vista da supercampeã) que pensa que a História do pensamento e da inteligência humana começa quando alguns ocidentais engendram este conceito. Imagina se os divinos africanos se importam se são corretos ou incorretos politicamente.
          Eles são isso há milênios e pronto! Pois sempre que um preto velho se senta à sombra do frondoso baobá, despreocupado dos tolos que se acham referência, e perto da chama da fogueira na noite dos tempos, começa a contar para sua aldeia que há glória no búzio, que a água salgada dos oceanos tem poder, ele está manifestando a fala de Olorum, que manda buscar na natureza, sim, a proteção de toda a vida humana. Simples assim.
          Se o dim-dim é bom? É ótimo, porque mais e mais descendentes de africanos estarão cantando sua extraordinária cultura na avenida. Nós, Viradourenses, detentores de teu troféu abacaxi, não perdemos a oportunidade de te agraciar com nosso Troféu Xuxu: aquele que se acha o máximo, mas que, no fundo, no fundo, se ressente de gosto. Continua tentando. Apimenta que melhora.
          Aliás, e a propósito, ano passado deslumbrante Beija-Flor de Nilópolis contou que os fenícios, hebreus, sumérios, (quase todos os povos do globo) vieram fixar residência no querido Amapá (que deu também uma graninha), fazendo de Macapá, antes de Cristo, a primeira cidade-dormitório de que se tem notícia na História da humanidade, e todo mundo a-do-rou. É impressão minha ou são dois pesos e duas medidas?
          E tenho que confessar que falo de cadeira confortável, porque mesmo sem ala de baianas, no desfile da Beija que fiz em 1996, sobre Bidu Sayão, ninguém da crítica viu ou criticou, e eu a-do-rei a pimenta nos olhos dos outros. Agora está ardendo um pouco. Mas vai passar. A divina Magalhães, la Rosa, elogiadíssima, me confidenciou: “Milton, ele adorou meu samba, mas diz que meu enredo são os 50 anos da Imperatriz. Não é, não! Meu enredo é o bairro de Ramos e sua importância para a configuração do Rio. O cinqüentenário até entra, mas não é o enredo, não!”
          Outra pergunta: o samba preferido, o guardião da virgindade, o deslumbre ‘Lendas das Sereias', do Império Serrano, que cita Ogunté, “a que veste o azul noite, cristal, verde e branco, a que traz um abebê, mas esconde-o nas costas quando puxa a espada de guerra, usa capacete, peitaça, adê, escudo, adornos com seus tons de azul noite, verde e prateado, traz em seu adê as sete estrelas da noite”.
          Como pode uma sereia destas flutuar com tanto ferro e aço e pedra e ainda assim ser rainha do mar? Se mora no mar, não deveria usar um modelito de lycra da Lenny, mais levezinho, não? Que coisa mais inexplicável, a bonita morar no fundo do mar e abdicar do neoprene. Será que falta um Nizan Guanaes na vida da coitada? Coisas dos pretos africanos. Fabulosos. E eu estou com eles. Tem coisas no mundo que não precisam de explicação. Incluído aí o carnaval e seus delirantes enredos. E seus sambas. E sua gente bamba bacana.
          Bando de pretos, como eu, fazendo a alegria da nação. E ai de alguém que diga que não sou africano. Viro bicho. Ou bicha, sei lá! E não sou politicamente correto, não. Eu sou é esperto! Vai rodar, rodar e acabar como começou, na África. Olorum manda!

Milton Cunha
(Publicado em O DIA, no dia 1 de dezembro de 2008)

 

Artigos