As múltiplas representações da ‘favela' no universo das letras de samba

 

          Considerada oficialmente a primeira favela do Rio de Janeiro, o Morro da Providência, que fica atrás da Central do Brasil, foi batizado no final do século 19 como Morro da Favela, daí também a origem do nome que se espalhou depois por outras comunidades carentes do Rio de Janeiro e do Brasil. Segundo a página eletrônica ‘Favela Tem Memória' (www.falevatemmemoria.com.br), os primeiros moradores do Morro da Favela foram ex-combatentes da Guerra de Canudos que se fixaram no local por volta de 1897, estimulados pela promessa dos governantes de ganharem casas na então capital federal.
          Passados 112 anos, o Rio de Janeiro possui, atualmente, mais de 900 favelas e/ou ‘comunidades carentes' — 968, segundo dados do Instituto Pereira Passos (IPP) divulgados em janeiro de 2009 — fenômeno também verificado em outras grandes capitais brasileiras, como São Paulo, Salvador, Recife, Porto Alegre e Belo Horizonte, resultado de intenso processo de urbanização/industrialização e concentração de renda, acelerados no país sobretudo após a década de 40. Favelas, em sua esmagadora maioria, caracterizadas por precaríssimos ou inexistentes serviços essenciais para uma razoável qualidade de vida, como saneamento, água e gás encanados, telefone, calçamento, escolas e postos de saúde, entre vários outros. Comunidades cujo dia-a-dia tem, infelizmente, sido marcado pela violência do tráfico de drogas, de milícias e da própria polícia. Cumpre ressaltar que, por ser considerado ‘pejorativo' pela ideologia hegemônica do ‘politicamente correto', no Brasil o termo ‘favela' caiu em desuso nos últimos 20 anos, quando foi substituído por ‘comunidade carente' ou, simplesmente, ‘comunidade'.
          Primeira composição classificada como ‘samba' a alcançar efetivo sucesso, Pelo Telefone, de Donga e Mauro de Almeida, marcou em 1917 o início na arrancada do gênero que, nas décadas seguintes, tornou-se o mais popular de todos na música brasileira, produzido essencialmente pelas massas de trabalhadores pobres, negros e moradores das periferias das grandes cidades. Favela e Samba. Samba e Favela. Duas dimensões de uma mesma moeda social, pois foi sobretudo nas favelas que o samba nasceu, cresceu e se criou. E favela sempre foi, para o samba, assunto de grande importância, central em muitas de suas composições.
          Como manifestação cultural, a música, em geral, e o samba, em particular, são também representações simbólicas (e ideológicas) produzidas pelos indivíduos numa determinada formação social, expressando o conjunto de suas contradições.
          O propósito deste artigo é demonstrar como, no universo do samba, a favela tem sido dupla e ambiguamente representada. Por um lado, como espaço de prazer, afeto, poesia, trabalho, dignidade e afirmação da identidade de seus moradores. Por outro, como arena do terror policial, do tráfico de drogas, da segregação, repulsa e ‘abandono' por parte de governos e autoridades, que insistem na apartação entre ‘morro' e ‘cidade', dois mundos separados pela injusta sociedade de classes em que vivemos.

1 - A favela como sonho, poesia e exaltação

          Duas das mais conhecidas manifestações de apreço pela favela e de identificação com seu ‘espaço' são os sambas Alvorada (Cartola-Carlos Cachaça-Herminio Bello de Carvalho) e Exaltação à Mangueira (Enéas Brites da Silva / A. Augusto da Costa), dois clássicos consagrados do gênero nos quais a favela é representada com grande força poética. Na gravação de Alvorada por Carlos Cachaça, por exemplo, o compositor explica, antes de cantar, que o samba fora composto por ele e Carlola quando, num belo dia, desciam o Morro do Pindura Saia — que, com Telégrafos, Santo Antônio, Chalé, Faria, Buraco Quente, Curva da Cobra, Candelária e outros pequenos núcleos formam o que atualmente se chama de ‘Complexo do Morro de Mangueira'. Seus versos não deixam dúvidas sobre a relação de afeto para com a favela e sua idealização enquanto ‘lugar de felicidade', onde ‘até a natureza' sorri:

“Alvorada lá no morro, que beleza,
Ninguém chora, não há tristeza
Ninguém sente dissabor
O sol colorindo é tão lindo, é tão lindo
E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo
(a alvorada )....”

          Exaltação à Mangueira, por sua vez, valoriza a escola de samba existente no morro como única por suas qualidades, ressaltando, ao mesmo tempo, a beleza estética da favela, produzindo um dos mais belos, melodiosos e conhecidos refrões do samba em todos os tempos.

“Mangueira teu cenário é uma beleza
Que a natureza criou, ô...ô...
O morro com teus barracões de zinco,
Quando amanhece, que esplendor,
Todo o mundo te conhece ao longe,
Pelo som de teus tamborins
E o rufar do teu tambor
Chegou, ô... ô...
A mangueira chegou, ô... ô...”

          Samba de Carlos Cachaça que enfatiza a ‘perfeição' do morro pela grande ‘integração' que proporciona às pessoas, até mesmo na hora de compor, Harmonia em Mangueira apresenta o morro como ‘berço do samba' exatamente por essas razões.

“Que harmonia lá em Mangueira
que dá prazer para se brincar
o Laudilino no seu cavaco fazendo coisas de admirar
e de repente com algum enredo que até causa sensação
o Armandinho chega de flauta, Alívio sola no violão
Refrão
na nossa frente tem Angenor, José da Lucha, tem Batelão
e o reco-reco toca sozinho
a tropa toda bate na mão.....”

          A apresentação da favela como espaço de valorização quase mágica do samba também é encontrada em Morro da Casa Verde (Adoniran Barbosa), onde o autor, após pedir silêncio — e só pede silêncio quem respeita e ‘quer contemplar' — diz que ‘no morro da Casa Verde a raça dome em paz, e lá embaixo meus colegas de maloca, quando começam a sambar não param mais.... Silêncio”.
          Seguramente uma das composições mais belas da música popular brasileira e do samba, Sei Lá Mangueira (Paulinho da Viola-Hermínio Bello de Carvalho) eleva o morro à qualidade de ‘céu intocável' onde a poesia ‘anda descalça ensinando um novo modo de viver, de pensar e de sofrer':

“Vista assim do alto
Mais parece um céu no chão
Sei lá,
Em Mangueira a poesia fez um mar, se alastrou
E a beleza do lugar, pra se entender
Tem que se achar
Que a vida não é só isso que se vê
É um pouco mais
Que os olhos não conseguem perceber
E as mãos não ousam tocar
E os pés recusam pisar
Sei lá não sei...
Sei lá não sei...”

          Pela força da imagem poética que constrói e transmite sobre o morro, Sei Lá Mangueira é, por muitos, considerada obra paradigmática na exaltação à favela, onde, 'pra se entender [a beleza do lugar] tem que se achar'.
          A exaltação à favela em si foi também objeto do samba de Roberto Martins e Valdemar Silva [Favela], gravado pelo inesquecível Ataulfo Alves. De estilo sincopado, a composição foi das mais completas expressões de afeto para com o morro, em versos que valorizam a favela como berço do próprio samba, em sentido geral:

“Favela, oi Favela
Favela que trago no meu coração
Ao recordar com saudade
A minha felicidade
Favela dos sonhos de amor
E do samba-canção
Hoje tão longe de ti
Se vejo a lua surgir
Eu relembro a batucada
E começo a chorar
Favela das noites de samba
Berço dourado dos bambas
Favela, é tudo o que eu posso falar”

          Composta em 1946 por Ary Barroso, Eu nasci no morro se diferencia de Favela por reconhecer os problemas ali existentes — onde a vida corre ‘de pé no chão' e ‘sem tostão' — o que faz com grande conformismo e resignação. Também se diferencia por idealizar o morro  como espaço de autenticidade, no qual as pessoas estabelecem ‘profundos laços de afeto' com o próprio chão em que vivem, o que, na letra, é contraposto ao caráter supostamente ‘efêmero' das relações dominantes ‘na cidade'. A conclusão é a de ser o morro o ‘lugar melhor' para se viver.

“Não tenho queixas da vida
Nem de ninguém
Que nasceu feliz
Pois cada um de nós, neste mundo,
Tem o destino que Deus lhe deu
Não adianta chorar
Não adianta se revoltar
Eu nasci no morro,
num pobre barracão
De caixão
Vida de cachorro
Pé no chão,
Sem tostão
E depois, segui o meu caminho,
Eu sozinho
Conheci o luxo, a vaidade
Lá da cidade
Meus amores
Não duravam mais que um dia
Eu sofria
Consolava o coração, no meu violão
Afinal, me convenci
Lugar melhor, não encontrei
No morro, eu nasci
E, no morro, eu morrerei”

          A idealização da favela nas letras de grandes composições — tanto na sua representação poética, quase mágica, quanto na valorização indireta de seus atributos — nem sempre foi, contudo, a tônica dominante no samba, que ao longo de sua história também expressou, sem concessões, a dura realidade dos morros e periferias cariocas e de outras regiões metropolitanas brasileiras. Senão vejamos.

2 - Resignação, conflito e tristeza na favela

          Gravada por Zé Ketti em 1965, o samba Acender as Velas é expressão manifesta do drama social vivido (e sofrido) pelos moradores de favela, onde ‘tudo falta' porque no morro ‘não tem automóvel pra subir, nem telefone pra chamar. O tom crítico, no entanto, é ofuscado por uma difusa resignação perante as adversidades do dia-a-dia na favela, onde ‘quando não tem samba, tem desilusão'.

“Acender as velas
Já é profissão
Quando não tem samba
Tem desilusão
É mais um coração
Que deixa de bater
Um anjo vai pro céu
Deus me perdoe
Mas vou dizer
O doutor chegou tarde demais
Porque no morro
Não tem automóvel pra subir
Não tem telefone pra chamar
E não tem beleza pra se ver
E a gente morre sem querer morrer”.

          O drama social da favela ‘esquecida' e ‘abandonada' pelas autoridades, onde se ‘morre sem querer morrer', como no samba de Zé Ketti, é representado com tons ainda mais fortes por Adoniran Barbosa, que, em Despejo na Favela, música de sua autoria, retrata o conflito de interesses entre uma difusa ‘ordem superior' — na verdade, a ordem social opressora e excludente imposta pelo capital sob a batuta do Estado — e o desejo dos moradores de na favela permanecerem, por ‘não terem pra onde ir'. Neste sentido, Despejo na Favela é uma das mais dramáticas representações, sob a forma de samba, do insolúvel e irreconciliável conflito de classes e interesses materiais na sociedade capitalista, onde o acelerado processo de urbanização/industrialização vem ao longo dos anos empurrando e marginalizando de forma crescente as massas de trabalhadores pobres dos grandes centros. Populações para as quais o Estado e o capital privado nunca dirigiram políticas habitacionais e sociais sérias, resultando no aumento da favelização e da segregação social a ela inerente. Vale a pena reproduzirmos na íntegra a letra desta grande composição.

“Quando o oficial de justiça chegou
Lá na favela
E contra seu desejo
entregou pra seu narciso
um aviso pra uma ordem de despejo
Assinada seu doutor, assim dizia a petição,
dentro de dez dias quero a favela vazia
e os barracos todos no chão
É uma ordem superior,
Ôôôôôôôô Ô meu senhor, é uma ordem superior
Não tem nada não seu doutor, não tem nada não
Amanhã mesmo vou deixar meu barracão
Não tem nada não seu doutor
vou sair daqui pra não ouvir o ronco do trator
Pra mim não tem problema
em qualquer canto me arrumo, de qualquer jeito me ajeito
Depois o que eu tenho é tão pouco minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás,
Mas essa gente ai hein como é que faz????

          O sentimento do samba para com a favela, no entanto, sempre foi mais ambíguo e rico de expressão, não limitando-se a uma visão maniqueísta que ora concebe o morro apenas como poesia, festa, glória e prazer, ou como somente abandono, sofrimento, violência, morte e dor. Ao contrário, na história do samba não são poucos os casos de composições que, embora sem negar as mazelas da favela e seus problemas sociais, incluindo a violência policial de que é alvo, sem idealizar seus supostos ‘atributos', reivindicam-na como espaço onde seus moradores expressam sua própria dignidade. É a favela, em toda sua plenitude, reivindicada por quem ali mora. Uma das composições  que melhor expressa tal sentimento é Opinião (Zé Ketti), cujos versos dizem:

"Podem me prender
Podem me bater
Podem até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião
Daqui do morro
Eu não saio, não
Se não tem água
Eu furo um poço
Se não tem carne
Eu compro um osso
E ponho na sopa
E deixa andar...
Fale de mim quem quiser falar
Aqui eu não pago aluguel
Se eu morrer amanhã, seu doutor
Estou pertinho do céu”

          Obra-prima da Música Popular Brasileira, nos anos 60 Opinião inspirou Oduvaldo Viana filho, Ferreira Gullar e Armando Costa a montarem a famosa peça teatral homônima que marcaria definitivamente a cultura de resistência à ditadura militar no Brasil. Além do próprio Zé Ketti, Opinião foi gravada por Nara Leão, Elis Regina e Jair Rodrigues. Mesmo aludindo ao preconceito contra o morro e reconhecendo todas as suas mazelas, Opinião tem a qualidade poética de ‘aproximá-lo do céu', num duplo sentido que tanto diz muito sobre a característica física da favela (sua altitude) quanto a associa ao ‘paraíso', em conotação de rara beleza na MPB.
          A favela enquanto lugar ‘onde o potencial e as qualidades de seus moradores são desprezados' está presente em O Morro não tem vez (Tom Jobim-Vinicius de Moraes), que recentemente ganhou nova roupagem na belíssima gravação de Martinália. A composição, das mais conhecidas na MPB, já tivera porém inúmeras gravações, com destaque para Wilson Simonal e Elis Regina, nos anos 60. Seus versos não deixam dúvidas quanto à valorização do Morro, lembrando que ‘o morro não tem vez, e o que ele fez já foi demais, mas olhem bem vocês, quando derem vez ao morro, toda a cidade vai cantar'. Curioso, ainda, o fato de O Morro não tem vez ser obra de dois compositores de classe média, influenciados por uma tradição musical, a bossa nova, que quase nada tem a ver com a matriz do samba produzido nos morros cariocas pelos extratos menos favorecidos da sociedade, de onde provém, inclusive, a maioria de seus autores.
          O desprezo e o preconceito contra a favela, vista pelo conjunto da sociedade e pelas autoridades como ‘reduto de marginal e do tráfico de drogas', é retratado no belíssimo samba de Noca da Portela e Sergio Mosca, Eu sou Favela, que mereceu excelentes regravações dos cantores Seu Jorge e Bezerra da Silva. A música é um verdadeiro libelo em que se reivindica a favela como ‘lugar de trabalhadores', de gente digna e honesta que, porém, sofre ao ser segregada pela sociedade, começando pela discriminação econômica materializada no ‘salário de fome'.

“A favela nunca foi reduto de marginal
A favela nunca foi reduto de marginal
Ela só tem gente humilde, marginalizada
E essa verdade não sai no jornal
A favela é um problema social
A favela é um problema social
Sim, mas eu sou favela
Posso falar de cadeira
Minha gente é trabalhadeira
E nunca teve assistência social
Ela só vive lá
Porque para o pobre não tem outro jeito
Apenas só tem o direito
A um salário de fome e uma vida normal
A favela é um problema social
A favela é um problema social”

3 - Malandragem, dá um tempo

          “Eu fui fazer um samba em homenagem à nata da malandragem, que conheço de outros carnavais. Eu fui à Lapa e perdi a viagem que aquela tal malandragem não existe mais”. Quando compôs e gravou Homenagem ao malandro, em 1979, Chico Buarque de Holanda referia-se à tradicional malandragem de Madame Satã, Geraldo Pereira, dos sambas de breque de Morengueira, dos bilhares da Lapa e do ‘vadio de navalha no bolso' — tão bem expresso por Wilson Batista em seu clássico Lenço no Pescoço — como contraponto aos ‘malandros de colarinho branco' dos novos tempos, malandros ‘com gravata e capital, que nunca se dão mal'. O que talvez nem Chico previsse era que, em se tratando de samba e favela, o passar dos anos denotaria a radical transformação desta última — onde o tráfico de drogas progressivamente tornou-se uma realidade ostensiva — a tal ponto que, de alguma forma, mais cedo ou mais tarde esse acontecimento histórico se expressaria na produção dos compositores (como todos nós, sujeitos imersos numa determinada formação social, pela qual são influenciados e sobre a qual também exercem considerável influência).
          Sucesso nacional na voz de Bezerra da Silva, Malandragem dá um tempo (Moacir Bombeiro / Adelzonilton) foi um exemplo dessas novas composições. Quase que explicitamente, sem moralismos ou hipocrisia — trouxe para o universo do samba e do pagode a temática das drogas, que, embora não seja exclusividade da favela, tem, nesta música, referências indiretas ao morro como sua ambiência.

“Vou apertar
Mas não vou acender agora
Vou apertar
Mas não vou acender agora
Eh! Se segura malandro
Prá fazer a cabeça tem hora
Eh, você não está vendo
Que a boca tá assim de corujão
Tem dedo de seta adoidado
Todos eles afim
De entregar os irmãos
Malandragem dá um tempo
Deixa essa pá de sujeira ir embora
É por isso que eu vou apertar
Mas não vou acender agora...ihhhhh!”

          Conflagradas por um Estado que lhes apresenta a brutal repressão policial como se fosse a única ‘política pública possível', negando-lhes o acesso aos direitos mais básicos da cidadania, as favelas e comunidades carentes do Rio e de outras grandes capitais brasileiras já foram comparadas a uma grande ‘panela de pressão' que, cedo ou tarde, explodirá. O que, sobretudo nas duas últimas décadas, vem sendo progressivamente atestado por frequentes revoltas de seus moradores contra abusos cometidos em incursões policiais que reforçam a criminalização da pobreza como ‘política de Estado'.
          A tensão social inerente a esse conflito foi, em 1993, apresentada por Wilson das Neves na gravação de um samba, em certo sentido, premonitório: O dia em que o morro descer e não for carnaval, do grande poeta e compositor Paulo Cesar Pinheiro. A letra fala por si, tamanha a riqueza de suas figurações e referências, a um só tempo, concretas e alegóricas.

“O dia em que o morro descer e não for carnaval
ninguém vai ficar pra assistir o desfile final
na entrada rajada de fogos pra quem nunca viu
vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil
(é a guerra civil)
No dia em que o morro descer e não for carnaval
não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral
e cada uma ala da escola será uma quadrilha
a evolução já vai ser de guerrilha
e a alegoria um tremendo arsenal
o tema do enredo vai ser a cidade partida
no dia em que o couro comer na avenida
se o morro descer e não for carnaval
O povo virá de cortiço, alagado e favela
mostrando a miséria sobre a passarela
sem a fantasia que sai no jornal
vai ser uma única escola, uma só bateria
quem vai ser jurado? Ninguém gostaria
que desfile assim não vai ter nada igual
Não tem órgão oficial, nem governo, nem Liga
nem autoridade que compre essa briga
ninguém sabe a força desse pessoal
melhor é o Poder devolver a esse povo a alegria
senão todo mundo vai sambar no dia
em que o morro descer e não for carnaval”

4 - A favela como parte intrínseca do cotidiano

          Da mesma forma que, ao longo da história, a favela foi objeto de variadas e contraditórias representações — ao mesmo tempo, como ‘chaga social' e um lugar ‘quase mágico' — também constatamos, nas letras de alguns sambas, a incorporação da favela como parte intrínsece ao cotidiano de seus moradores. É a favela como ‘pano de fundo', ou um dos planos centrais, para os acontecimentos mais comuns do dia-a-dia. Neste sentido, dois sambas (pagodes) são emblemáticos: Só pra contrariar (Almir Guineto, Arlindo Cruz e Sombrinha) e Faixa Amarela (Zeca Pagodinho/Jessé Pai-Luiz Carlos-Beto Gago). Vejamos alguns trechos de suas letras:

Só pra contrariar
Só pra contrariar
Eu não fui mais na favela
Só pra contrariar
Não desfilei na Portela
Só pra contrariar
Pus a cara na janela
Só pra contrariar
Eu não fiz amor com ela.(...)
Contrariei, mas essa castidade abri a fivela
(.....) Só pra contrariar, ela ainda é donzela
Só pra contrariar
Eu não fui mais na favela
Só pra contrariar
Não desfilei na Portela
Só pra contrariar
Pus a cara na janela
Só pra contrariar
Eu não fiz amor com ela

Faixa Amarela

“Eu quero presentear
A minha linda donzela
Não é prata nem é ouro
É uma coisa bem singela
Vou comprar uma faixa amarela
Bordada com o nome dela
E vou mandar pendurar
Na entrada da favela (2x)
Vou dar-lhe um gato angorá
Um cão e uma cadela
Uma cortina grená para enfeitar a janela
Sem falar na tal faixa amarela
Bordada com o nome dela
Que eu vou mandar pendurar
Na entrada da favela” (....)

          Em ambas [Só pra contrariar e Faixa Amarela], temos a favela valorizada como referência de grupo e coletividade, espaço adequado à ‘publicização' tanto dos conflitos conjugais e familiares [Só pra contrariar] quanto dos afetos do casal [Faixa Amarela]. A favela, em suma, como estuário dos sentimentos individuais e expectativas de um determinado grupo social. No primeiro caso [Só pra contrariar], há um conflito aberto entre a pessoa do discurso, ou quem fala na música, e o conjunto de suas referências sociais e individuais (a escola de samba, a ‘amada' e a favela), dos quais se ausenta e a cujas expectativas não atende, como nos versos: Só pra contrariar/ Eu não fui mais na favela/ Só pra contrariar/ Não desfilei na Portela/ Só pra contrariar/ Pus a cara na janela/ Só pra contrariar/ Eu não fiz amor com ela.
          A favela, no caso, aparece como referência tão importante para o autor quanto o amor conjugal e a escola de samba. Favela na qual criam-se expectativas quanto à sua esperada (e não realizada) presença, e que, de tão valorizada para ele, é usada em seu ‘protesto difuso'. Em outras palavras, a publicização do conflito entre a pessoa e o mundo se dá pela ausência momentânea daquela da favela.
          Faixa Amarela, por sua vez, retrata a publicização dos sentimentos e sua divulgação na favela como elemento valorizador desses mesmos sentimentos e gestos — como, por exemplo, o de ‘presentear a linda donzela', ou ‘comprar uma faixa amarela bordada com o nome dela' — denotando a incorporação da favela como uma das referências centrais da vida cotidiana. Onde se divulga ‘aquilo que é bom'.

5 - Conclusões e reflexão final

          Refletindo sobre o modus operandi da ideologia, Nicos Poulantzas (1977) afirma que:
          "A ideologia tem precisamente por função, ao contrário da ciência, ocultar as contradições reais, reconstituir, em um plano imaginário, um discurso relativamente coerente que serve de horizonte ao vivido dos agentes, moldando as suas representações nas relações reais e inserindo-as na unidade das relações de uma formação".
          Se a ideologia é ‘consciência falsa' da realidade, ela também apresenta-se como a ‘verdade possível' sobre um determinado real, mesmo que fragmentado e atomizado. Neste sentido, muito há ainda que se aprofundar na reflexão sobre o samba enquanto expressão e representação das contradições reais existentes na sociedade. Contradições cuja complexidade manifesta-se no caráter multifacetado das letras desse que é um dos maiores (senão o mais importante) dos gêneros musicais brasileiros. Samba que, acompanhando o crescente processo de urbanização/industrialização e as transformações estruturais por que vem passando a formação social brasileira nas últimas décadas, também se renova a cada dia, modificando sua própria forma de expressão musical e poética, incorporando novas (e às vezes inesperadas) temáticas. Samba que nos ajuda a compreender que as pessoas, em sua relação com o mundo, o meio que as cerca e o chão em que pisam, estabelecem dúbias e ambíguas relações com este mesmo mundo. Apenas assim — e contra toda expectativa racional — compreende-se que alguém possa, como no samba de Adoniran Barbosa, chamar de ‘saudosa' uma maloca. Ou então, batendo no peito, dizer: eu sou favela, sem negar ou fugir de seus (gravíssimos) problemas.
          É o samba igual à ‘vida como ela é'.

Referências Bibliográficas:

  • ALTHUSSER, Louis. " Aparelhos ideológicos de estado ". In ZIZEK, Slavoj (org.). Um Mapa da Ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1984.

  • ALVES FILHO, Aluizio. “ A ideologia como ferramenta de trabalho e o discurso da mídia ”. In Revista Comum, vol. 5, nº 15 - publicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso, 2000.

  • CABRAL, Sergio. Ataulfo Alves – Vida e Obra. São Paulo: Lazuli/Companhia Editora Nacional, 2009.

  • ____. Escolas de Samba do Rio de Janeiro . Lumiar.

  • LINS, Paulo. Cidade de Deus. Cia das Letras, 1997.

  • LOPES, Nei. O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical. Pallas, 1992.

  • POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes, 1977.

  • RIO, João do. A Alma Encantadora das Ruas . Cia das Letras.

  • VENTURA, Zuenir. Cidade Partida. Cia das Letras.

  • Site Favela Tem Memória - www.favelatemmemoria.com.br, do portal Viva Favela, Movimento Viva Rio.

Fonogramas pesquisados:

  1. Pelo Telefone (Donga-Mauro de Almeida) – intérprete: Mário Reis.

  2. Alvorada (Cartola-Carlos Cachaça-Herminio Bello de Carvalho) – intérprete: Carlos Cachaça.

  3. Exaltação à Mangueira (Enéas Brites da Silva / A. Augusto da Costa) – intérprete: Chico Buarque.

  4. Harmonia em Mangueira (Carlos Cachaça) – intérprete: Carlos Cachaça.

  5. Morro da Casa Verde (Adoniran Barbosa) – intérprete: Demônios da Garoa.

  6. Sei Lá Mangueira (Paulinho da Viola-Hermínio Bello de Carvalho) – intérpretes: Paulinho da  Viola/Caetano Veloso.

  7. Eu nasci no morro (Ary Barroso) – intérprete: Monarco.

  8. Favela (Roberto Martins - Valdemar Silva) – intérprete: Ataulfo Alves.

  9. Acender as Velas (Zé Ketti) – intérprete: Zé Ketti.

  10. Despejo na Favela (Adoniran Barbosa) – intérprete: Adoniran Barbosa.

  11. Opinião (Zé Ketti) – intérprete: Zé Ketti.

  12. O Morro não tem vez (Tom Jobim-Vinicius de Moraes) – intérprete: Martinália.

  13. Eu sou Favela (Noca da Portela e Sergio Mosca) – intérprete: Seu Jorge.

  14. Lenço no Pescoço (Wilson Batista) – intérprete: MPB4

  15. Homenagem ao malandro (Chico Buarque de Holanda) – intérprete: Chico Buarque.

  16. Malandragem dá um tempo (Moacir Bombeiro / Adelzonilton) – intérprete: Bezerra da Silva.

  17. Mangueira e suas Glórias (Monarco) – intérprete: Monarco .

André Pelliccione
André Pelliccione é Jornalista e Mestre em Ciência Política pela UFRJ.
(Publicado originalmente no Jornal Sindsprev/RJ em 25/06/2010)

 

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