O Rio de Janeiro
em tempo de Debret
Introdução: A missão artística Francesa
Quando
D. João VI foi elevado à categoria de príncipe real do Reino Unido de
Portugal e Algarves, compreendeu que o Rio de Janeiro, sede da monarquia,
necessitava de estabelecimentos de educação que completassem os melhoramentos
levados a efeito na América Portuguesa desde 1805. Dentre tantos melhoramentos,
encontramos o da vinda da Missão Artística Francesa de 1816 que tanto
veio favorecer às artes plásticas brasileiras. Resolve assim contratar
na Europa em 1815, um grupo de artistas e artífices que aqui viesse
fundar uma escola de ciências, artes e ofícios, aproveitando idéia sugerida
por D. Antônio de Araújo Azevedo, Conde de Barca.
Assim sanados todos os entraves, inclusive as dificuldades impostas
pelo governo ante a imigração de tantos artistas de incontestável valor,
ficava a Missão Francesa constituída da seguinte forma:
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Joaquim Lebreton (1760-1819) – chefe
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Jean Baptiste Debret (1768-1830) – pintor-histórico
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Nicolas Antoine Taunay (1755-1830) – pintor de paisagem
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Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny (1766-1850) – arquiteto
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Auguste Marie Taunay (1768-1848) – escultor
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Charles Simon Pradier (1786-1848) – gravador
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Segismund Neukomm (1778-1858) – compositor, organista e mestre-de-capela
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Nicolas Moolion Ekout, Jean Baptiste Level, Louis Joseph Rovefilho –
Artífices
Recebendo recomendações especiais na embaixada em Paris, embarcaram
os componentes da Missão no veleiro norte-americano “Calpe” partindo
do Havres a 22 de fevereiro de 1816 com destino ao Brasil.
A vida de Debret
De todos os componentes da Missão Francesa o que mais nos chama a
atenção é Jean Baptiste Debret.
Nasceu em Paris a 18 de abril de 1768.
Após regresso de uma viagem a Itália, conseguindo aí um prêmio com
o quadro “Régulo voltando a Cartago”, ingressou em 1785 na Academia
de Belas-Artes. Depois cursou a Escola Politécnica lecionando posteriormente
a cadeira de Desenho.
Em 1814 perdeu seu único filho de 19 anos, caindo em estado de total
desânimo acabou seguindo para o Brasil, na missão com Lebreton.
Permaneceu no Brasil de 1816 a 1831. Lutou sempre pela melhoria do
ensino da pintura de que foi um grande renovador. Diante das dificuldades
encontradas para o início do curso na Academia, Debret, juntamente
com Montigny abriu um curso de pintura em sua própria casa. Entre
seus discípulos podemos citar: Francisco Pedro do Amaral, Manuel de
Araújo Porto Alegre, Simplício Rodrigues Sá, José da Silva Arruda,
Guilherme Muller, etc.
Observador profundo, desenhista e colorista extraordinário, fez uma
obra notável. “Voyage Pittoresque et Artistique au Brèsil” abundantemente
ilustrada em 3 volumes.
Nela ele retrata bem os costumes do povo e da sociedade da época,
as artes, ofícios, comércio, arquitetura, além de aspectos e hábitos
dos índios e da flora.
Foi ainda gravador, água-fortista e heraldista, sendo de sua autoria
as armas e a Bandeira do Império do Brasil assim como as belas insígnias
da Ordem da Rosa e do Cruzeiro do Sul.
Participando desde sua chegada ao Rio de Janeiro de importantes atividades
artísticas Debret teve, de fato, inúmeras ocasiões, durante sua permanência
no Brasil, de pôr a prova essa qualidade.
Desde as soleníssimas festas que marcaram a Aclamação de D. João VI,
o desembarque da princesa Leopoldina, os principais acontecimentos
políticos do Reino Unido até os do Primeiro Reinado foram fixados
em várias de suas telas.
Século e pouco passados, a dedicação do artista valeu-lhe a honrosa
expressão “Tempo de Debret” , quinze anos em que começou a ser plasmado
com mais intensidade a nacionalidade brasileira.
Tempo de Debret
A Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, além do documentário iconográfico
contém como explicou o autor na Introdução, precisas informações sobre
acontecimentos, usos, costumes, dados etnográficos e estatísticos
relativos em geral ao período em que Debret aqui residiu.
1ª Parte: O Estado selvagem do povo brasileiro
“O Índio”
Quando a Missão chegou ao Brasil, a população indígena ia sendo tangida
para o interior ou desaparecida, vencida irremediavelmente pela assimilação
ou pelo extermínio decorrente da marcha da civilização.
Todo este sofrimento é representado por Debret pela expressão do rosto
de um chefe Camacã Mongoió, traduzindo esse sentimento de preocupação.
Já a índia desta mesma tribo apresentava formas roliças e enfeites
tradicionalmente usados eram de natureza mais delicada predominando
a utilização de flores e colares, havendo aí, um singular contraste
com a exuberância muscular dos índios afeitos às duras lides da caça
e da guerra.
A vida dos índios era uma sucessão de guerras e festas.
Durante o combate o chefe ficava sempre num ponto elevado de onde
sempre pudesse dominar o campo de batalha para observar a luta ou
dar as ordens necessárias.
Segundo Debret dava-se o nome de caboclo a todos os índios civilizados
ou aos que já haviam sido batizados. Estes índios ajudavam aos ricos
proprietários da região em suas tarefas em troca de gêneros alimentícios
e de aguardente.
Já os borenos além de serem exímios no arco, flecha e tacape, atacavam
as habitações inimigas com tições ardentes feitos de galhos de pinheiros
envolvidos por fibras e resinas combustíveis.
Os selvagens chardos utilizavam-se de cavalos selvagens que inclusive
faziam parte de sua alimentação. Os civilizados se destacaram na venda
de animais aos brancos. Eram também freqüentemente utilizados como
guias de caravanas que seguiam para o interior. Sua valentia era tradicional.
Faziam-se pagar com dinheiro que desperdiçavam nas tabernas em fumo,
cachaça e jogo.
Os guaicurus possuíam hábitos tradicionalmente diferentes das demais
tribos do país. Sabiam domar com habilidade os cavalos selvagens.
Possuíam um padrão de vida sensivelmente superior aos outros selvagens,
mas mantinham-se fiéis ao uso da tatuagem.
Outros índios civilizados procuravam imitar em suas tatuagens a indumentária
militar européia. O penteado era levantado como uma espécie de diadema
como as mulheres brancas usavam. Em suas danças usavam apenas o tambor
para fazer o acompanhamento musical.
Os índios depois de civilizados faziam diversas atividades inclusive
a lavagem de roupas, que ficava a cargo das mulheres. Essas roupas,
eram lavadas nas águas do rio que descia das Laranjeiras e desaguava
na Praia do Flamengo (Carioca). A roupa lavada e engomada era entregue
na porta dos fregueses, conduzindo-na à cabeça em grandes trouxas
como ainda hoje as lavadeiras fazem.
Os índios guaranis cuja atividade era especialmente dedicada à cultura
da uva e à fabricação do vinho, tinham nos seus usos e costumes características
acentuadas dos povos hispano-americanos especialmente nas vestimentas.
Eram também empregados no Rio de Janeiro como artilheiros. Suas mulheres
provinham da catequização jesuítica e seguiam à risca os rituais da
igreja católica.
2ª Parte
Entra em cena o colonizador: o branco e o negro africano ao qual dedica
o autor a quase totalidade de suas gravuras.
O Negro Africano
A simples observação das estampas escolhidas nos dá uma clara idéia
do enorme papel desempenhado pelo negro na sociedade da época.
Era a força de trabalho por excelência em qualquer setor da atividade
que exigisse movimento, lá estava ele com seus músculos retesados
gemendo, mas suportando a parte pior de todo o serviço.
As ruas se enchem de vendedores ambulantes com seus enormes cestos
que serviam para o transporte na cabeça de qualquer carga. As aves
transportadas aos ombros ou dentro dos jacás eram vistas de longe
e os vendedores de samburás e palmitos, davam curiosa nota pitoresca
á vida da cidade.
Pássaros e beija-flores, o curioso “Regresso dos negros e de um naturalista”,
gravura que Debret tão bem representa a natureza de nosso país que
parecia não ter limites no que respeitava à variedade da flora e da
fauna.
O carvão também era vendido nos jacás por negros que o iam apanhar
à beira do cais ou nos pontos de chegada das tropas do interior. Espigas
de milho eram assadas ou cozidas e vendidas nas ruas e praças da cidade.
As negras livres procuravam ganhar a vida trabalhando como costureiras
em casas francesas ou como quitandeiras vendendo, legumes e frutas.
Eram vendidos também o aluá (bebida feita a base de arroz), os limões
de cheiro, a cana, o manoé (pastel de carne) e o sonho, que ainda
hoje constitui doce de fabrico obrigatório nas confeitarias.
Haviam também as negras vendedoras de angu que começavam cedo suas
atividades que duravam o dia inteiro.
Os catadores de rua faziam as delícias dos escravos que perambulavam
por todas as partes da cidade. O pão-de-ló era um dos doces de maior
consumo no Rio de Janeiro e seus vendedores saíam de casa pela manhã
para correr a freguesia e vender nas ruas e voltavam a tarde às suas
ocupações costumeiras.
Era hábito o emprego de flores para traduzir sentimentos de amor.
Vendiam-se também nas ruas o sapê e o capim seco utilizados na fabricação
de colchões e travesseiros.
A lavagem de roupas ocupava um grande número de escravos e era feita
em geral, à beira dos rios. Essa atividade era também exercida nos
chafarizes da cidade principalmente nos da Carioca e Campo de Santana
sendo que este último chegou a ser apelidado “Chafariz das Lavadeiras”
pela quantidade de mulheres que dia e noite trabalhavam junto dele.
Os vendedores de arruda eram os que mais lucravam com sua venda, pois
era uma das ervas mais usadas, possuindo a virtude segundo se acreditava,
de evitar o mau-olhado, encostos e outras superstições. Dizia-se “toma
arruda que ela remedia tudo”.
Mas a vida no Rio de Janeiro naquela época não se limitava apenas
aos vendedores ambulantes, também os negros tinham seus momentos de
prazer e poesia.
A poesia tão brasileira do passeio nas tardes de domingo de mistura
com uma antevisão das serestas do violão e cavaquinho é captado (foi)
pelo pincel de Debret. Nasce assim a escola de samba que hoje se transformou
numa organização extremamente festiva.
Nas brincadeiras de carnaval predominavam o emprego de limões-de-cheiro
que eram, na realidade bolas ocas de cera contendo um líquido perfumado.
Os negros divertiam-se jogando uns nos outros grandes quantidades
de polvilho. Os moleques usavam seringas cheias de água para dar nos
companheiros verdadeiros banhos. Este tipo de festa era chamado de
Entrudo que hoje chamamos de Carnaval.
A malhação do Judas era um sinal de alegria, anunciando o Sábado de
Aleluia. A queima dos bonecos ocorria simultaneamente com as salvas
de artilharia.
Nas festas de Natal e da Páscoa muitos negros aproveitavam para ir
à roça para visitar os parentes. As mulheres vestiam-se com suas melhores
roupas além de levarem presentes para seus compadres e afilhados.
O batismo dos negros constituía cerimônia um tanto o quanto bárbara
pois dava-se um verdadeiro banho forçado nas crianças provocando por
parte delas enorme berreiro.
O Branco
Já o homem branco segundo Debret levantava-se antes do sol percorria
com a aragem uma parte da cidade, entrava na primeira igreja aberta,
rezava e continuava o seu passeio até às seis horas da manhã. Almoçava
então, jantava ao meio dia e fazia a sesta até às três horas da tarde.
Vida boa essa ein?
Por vezes à tarde juntavam-se os homens de todas as classes sociais
capitalistas, capitães de navios, embarcadiços, funcionários, oficiais
das tropas, comerciantes em geral, religiosos e até desocupados para
tomarem refrescos e comerem doces oferecidos pelas negras doceiras.
Os domingos e dias santificados davam oportunidade às esposas e filhas
dos homens da classe média de exibirem seus vestidos para as amigas
ou no caso das meninas tentarem começar até um namoro com algum rapaz
de boa família. Nestas ocasiões as cadeirinhas eram utilizadas comumente
para conduzir as senhoras à missa.
As cadeirinhas e serpentinas das damas eram fechadas com portinhas
e cortinas ou postigos de maneira que elas podiam arriscar um rabo
de olho para fora sem contudo serem vistas. Casamentos e batizados
eram feitos também neste veículo. Nos casamentos a noiva era transportada
para igreja numa delas, à frente do cortejo. O noivo, os padrinhos
e convidados seguiam logo atrás a pé. Nos batizados era a babá quem
desfrutava a honra de ir de cadeirinha com o bebê ao colo e o resto,
pais, padrinhos e convidados seguiam ao lado a pé.
Nos domingos ou dias de passeio, era comum se observar cenas de um
funcionário público ou chefe de família saindo de casa fazendo-se
observar uma rigorosa ordem de precedência. Ele, naturalmente rompendo
a marcha. Seguem os filhos com os novos à frente, a mulher já esperando
outra criança, sua criada de quarto, as amas, o criado do patrão e
mais alguns escravos de serviço doméstico e por vezes até o cachorrinho.
No primeiro domingo da Semana Santa, a procissão de Ramos era um acontecimento
na vida da cidade. Não faltavam anjinhos tradição que continua até
hoje. Aos escravos conduziam as palmas bentas pertencentes ao seu
amo, é de muito uso por ocasião das fortes trovoadas de verão.
A festa do Imperador do Divino Espírito Santo era também uma nota
pitoresca. Era precedida um bando ruidoso de jovens tocadores de violão,
de pandeiros e de ferrinhos. Um tambor e um porta bandeira completavam
o quadro de acompanhantes, a que não faltavam os pedintes e dois irmãos
da Irmandade que escoltavam o jovem monarca.
3ª Parte: Reinado e Império
A Corte
O último tomo do livro de Debret foi dedicado à apreciação de nossa
histórica política e religiosa.
O autor esteve no Brasil numa época marcada por acontecimentos decisivos
pra os nossos destinos. Aqui ele chegou quando ainda festejávamos
a elevação do país à categoria de Reino Unido a Portugal. Contribuiu
com seu trabalho pra as solenes festividades com que se celebrou a
Aclamação de D.João VI no Rio de Janeiro, cuja estampa vale um instantâneo
da solenidade histórica da ascensão de Dom João VI, antigo Príncipe-Regente
do Brasil à condição de rei. Focaliza o momento dos aplausos assim
como a vista exterior da galeria da Aclamação de D. João VI.
Retratou com exatidão também o Cortejo do Batismo da Princesa Real
D. Maria da Glória, as esposas dos monarcas que governaram o Brasil
durante o período em que aqui viveu como A arquiduquesa Leopoldina,
a rainha D. Carlota Joaquina e a princesa Amélia, segunda esposa de
D. Pedro I.
Debret retratou com exatidão uma das mais famosas cenas históricas
brasileiras, O desembarque da Princesa Real D. Leopoldina pouco tempo
antes da Aclamação de D. João VI que movimentou a cidade inteira pela
imponência das solenidades. Arcos de triunfo são erguidos, ruas e
casas enfeitam-se fogos de artifícios são queimados.
Como parte das comemorações relacionadas com a Aclamação do Rei D.
João VI, houve a exibição de um bailado. Debret pintou o pano de boca
do teatro.
Assim como Debret representou tão bem os costumes e roupagens dos
mais humildes, soube também retratar o fausto, as grandes vestimentas
e retratos das damas da corte e os uniformes dos oficiais e ministros
com bordados na gola e nos enfeites.
Outros acontecimentos importantes da corte foram observados por Debret,
como o regresso da Corte a Portugal, a Jornada do Dia do Fico, A Independência
com suas grandes figuras como: José Bonifácio e José Clemente Pereira,
a Aclamação de D. Pedro I, foram episódios ocorridos durante a permanência
de Debret entre nós.
Essas são as deliciosas gravuras de Debret disputadíssimas nos dias
de hoje dado o seu caráter espontâneo e vivo, destituídas de pretenções
excessivas de técnica chegam elas aos nossos dias sem o ar avelhantado
das coisas seculares, mas trazem á hora atual a presença dos velhos
tempos de “Rio de Janeiro em tempo de Debret”.
José Alves do Rio
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