Escola de samba sem harmonia é samba?
Que evolução é essa

 
          A decisão das escolas de samba do Grupo de Acesso A de fundir os quesitos harmonia (canto) e evolução (dança) mostra como a supervalorização do visual parece um caminho sem volta na Sapucaí. Há informações, não confirmadas, de que escolas do Grupo Especial defenderiam mudança semelhante.
          A evolução e a harmonia são duas expressões da arte maravilhosa dos sambistas e das escolas. Com a unificação, passarão a valer menos, a ser menos importantes para o resultado final do desfile, do que quesitos "visuais", como alegoria e fantasia.
          Um dos argumentos levantados por quem defende a redução do peso ou até a extinção do quesito harmonia é que o sistema de som da Sapucaí impede que o público nas arquibancadas e mesmo os jurados (em cabines afastadas da pista) ouçam ou verifiquem se a escola está mesmo cantando em conjunto e perfeitamente integrada ao ritmo da bateria. Se o problema é esse, ele não está na escola - mas no sistema de som do Sambódromo. Ele, sim, deveria ser mudado.
          As escolas não deixaram de cantar. O poder e a beleza do canto das escolas resiste, apesar do sistema de som. E é fácil perceber a importância desse canto para o sucesso de um desfile.
          Dois exemplos recentes: o Império Serrano em 2004, com "Aquarela brasileira", criticado pela falta de imaginação e cuidado de figurinos e carros, foi a maravilha de cenário que foi por obra e graça do gênio de Silas de Oliveira e por conta da paixão dos imperianos (e simpatizantes) ao cantar aquele samba-enredo na avenida. Tinha tudo para dar errado: era gente demais, diretoria de menos, e o tal cronômetro - que "justifica" o nome Sambódromo - atormentando os corações. Mas o que se ouviu foi emocionante. Quase (ou mais de?) cinco mil componentes, "possuídos" de alegria, cantando sem parar e em total integração com os ritmistas. A harmonia, quase milagrosa diante das circunstâncias, fez a diferença.
          O segundo exemplo: a Unidos da Tijuca em 2003, com "Agudás", um samba-enredo precioso, que quase "sucumbiu" diante da falta de integração entre o canto do puxador, o acompanhamento do cavaquinho, o ritmo da bateria e o canto dos componentes. Não importa aqui discutir quem errou ou como, mas registrar que o problema na harmonia estava claro para os ouvidos: algo não "casava" (vozes e instrumentos), soava mal, desencontrado. O sistema de som da Sapucaí, por mais forte que seja, não escondeu essas dificuldades. Quem estava atento pôde ouvir e ficou triste.
          Outro argumento lançado por quem é a favor da unificação é que alguns jurados confundem os conceitos de harmonia e evolução. Se reduzirmos os dois quesitos a duas palavras, poderíamos dizer que harmonia é canto, evolução é dança. Sim, os dois são mais do que isso. Mas as raízes de um e de outro são tão diferentes que fica difícil entender o argumento. De novo, o problema não parece estar na harmonia ou na evolução das escolas, mas, agora, no entendimento que os jurados têm dos dois quesitos. Para consertar isso, não é necessário unificá-los, basta esclarecer os jurados sobre o que cada um analisará.
          Unificar harmonia e evolução não parece uma solução. Eliminar ou reduzir o peso do quesito harmonia significa dizer às escolas que não precisam se esmerar tanto no seu ensaio de canto porque as caixas de som são o espetáculo.
          Laíla, que é um mestre no quesito harmonia, mostra o valor do canto a cada desfile da Beija-Flor. E também a cada ensaio técnico, quando separa a quadra ou a pista em dois ou mais grupos e pede para que cada um deles cante separadamente; e, depois, quando corrige o canto desses grupos, e quando alerta a bateria, e quando orienta Neguinho; e, no momento maior, quando junta todas essas pessoas num canto único, perfeitamente acompanhadas pela bateria. Essa arte é menor do que a que ergue o "Palácio do Faraó" no abre-alas da escola?

Aloy Jupiara
(Publicado originalmente no jornal O Globo em 30 de junho de 2005)

 

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